Por Miguel Nagib
No capítulo 3º do livro didático “Português Linguagens - 5º ano”, de autoria de William Roberto Cereja e Thereza Cochar (Editora Atual, pertencente ao grupo Saraiva), os estudantes encontram, logo abaixo do título – “O gosto amargo da desigualdade” –, o seguinte parágrafo:
Você alguma vez já se sentiu injustiçado? Seu amigo com duas bicicletas, uma delas novinha, e você nem bicicleta tem... Sua amiga com uma coleção inteirinha da Barbie, e você que não ganha um brinquedo novo há muito tempo... Se vai reclamar com a mãe, lá vem ela dizendo: ‘Não reclama de barriga cheia, tem gente pior do que você!’. Será que há justiça no mundo em que vivemos?
A resposta negativa é apresentada sob a forma de um texto, em estilo pretensamente literário, seguido de uma bateria de perguntas destinadas a atiçar o “pensamento crítico” dos alunos (supondo-se, é claro, que crianças de 10 anos possuam conhecimento e maturidade para pensar criticamente).
O texto consiste, resumidamente, no seguinte: ao ver o filho entretido com um globo terrestre, o pai lhe confessa a sua “birra contra geografia”, atribuindo a aversão a uma professora que tivera no ginásio. Um dia, conta o pai, a professora Dinah resolveu dar aos alunos uma aula prática sobre a distribuição de renda no Brasil. Dizendo que o conteúdo de uma caixa de doces representava a riqueza do país, a professora começou a distribuir os doces entre os alunos, dando a uns mais que a outros. Os primeiros da lista de chamada ganharam apenas um doce; da letra G até a M, dois doces; de N a T, três; Vanessa e Vítor ganharam seis, e Zilda, finalmente, ganhou a metade da caixa, 24 doces. A satisfação inicial dos primeiros se transformava em revolta à medida que percebiam a melhor sorte dos últimos: “Ninguém na sala conseguia acreditar que a Dinah tava fazendo aquilo com a gente. Até naquele dia, todo mundo era doido com ela, ótima professora, simpática, engraçada, bonita também.” A história termina com o filho, frustrado, entregando ao pai o globo terrestre: “Toma esse negócio. Se a geografia é assim desse jeito que você tá falando, eu não vou querer aprender também não”.
Seguem os questionamentos:
– A distribuição dos doces promovida pela professora serviu para ilustrar como é feita a distribuição de riquezas no Brasil. Associe os elementos da aula ao que eles correspondem no país:
• [os doces] • os patrões, os empresários, o governo, etc.
• os alunos • o povo
• a professora • a riqueza
– Dos alunos da sala, quem você acha que reclamou mais? E quem você acha que não reclamou? Por quê?
– Na opinião da maioria dos alunos, como a professora deveria ter distribuído os doces?
– A distribuição de doces feita pela professora ilustra a situação de distribuição de renda entre os brasileiros. De acordo com o exemplo:
a) Quem fica com a metade da riqueza produzida no país?
b) Para quem fica a outra metade?
c) Na sua opinião, a minoria privilegiada reclama da situação?
d) E os outros, deveriam reclamar? Por quê?
– Dona Dinah, pela aula prática que deu, talvez não tenha agradado a todos os alunos. No entanto, você acha que eles aprenderam o que é distribuição de renda?
– No final do texto, Mateus diz ao pai: “Toma esse negócio!”. E começa a dormir sem o globo terrestre.
a) O que você acha que o menino está sentindo pelo globo nesse momento?
b) Na sua opinião, é pela geografia que ele deveria ter esse sentimento?
– Segundo o narrador, a turma tinha entre onze e doze anos e não estava interessada no assunto distribuição de renda. Na sua opinião, existe uma idade certa para uma pessoa começar a conhecer os problemas do país? Se sim, qual? Por quê?
– Os alunos que ganharam menos doces sentiram-se revoltados com a divisão feita pela professora.
a) Na vida real, como você acha que se sentem as pessoas que têm uma renda muito baixa? Por quê?
b) Que consequências a baixa renda traz para a vida das pessoas? Dê exemplos.
c) Na sua opinião, as pessoas são culpadas por terem uma renda baixa?
– Muitas pessoas acham que uma das causas da violência social (roubos, furtos e sequestros, por exemplo) é a má distribuição de renda. O que você acha disso? Você concorda com essa opinião.
Vejam vocês a que nível chegou a educação no Brasil.
Decididos a “despertar a consciência crítica” dos seus pequenos leitores – missão suprema de todo professor/escritor amestrado na bigorna freireana (ademais, se o livro não for “crítico”, a editora não quer, porque o MEC não aprova, os professores não adotam e o governo não compra) –, mas cientes, ao mesmo tempo, da incapacidade das crianças para compreender minimamente, em termos científicos, o tema da desigualdade social, Cerejão e Therezinha (permitam-me a liberdade eufônica) optaram por uma abordagem emocional do problema. Afinal, devem ter ponderado, embora os alunos não tenham idade para entender o que é e o que produz a desigualdade na distribuição das riquezas, nada os impede de odiar desde logo essa coisa, o que quer que ela seja.
A dupla de escritores assumiu, desse modo, o seguinte desafio (como eles gostam de dizer) “político-pedagógico”: criar uma empatia entre os alunos e as “vítimas da injustiça social”; induzi-los a acreditar que toda desigualdade é injusta, de sorte que para acabar com a injustiça é preciso acabar com a desigualdade; e predispô-los, enfim, a aceitar ou apoiar a bandeira do igualitarismo socialista.
Como na cabeça de Cerejão e Therezinha vida de pobre consiste em sentir inveja de rico, era necessário lembrar às crianças como é triste não ter uma bicicleta, quando o amigo tem duas, ou não ter uma boneca, quando a amiga tem várias. Mas, em vez de chamar essa tristeza pelo nome que ela tem desde os tempos de Caim, o livro a ela se refere como “sentimento de injustiça”.
Assim, além de transmitir às crianças uma visão ideologicamente distorcida – e portanto falsa – dos mecanismos de produção e distribuição da riqueza na sociedade e da realidade vivida por uma pessoa pobre, a dupla Cerejão e Therezinha as ensina a mentir para si mesmas, a fingir que sentem o que não sentem e a berrar “injustiça!” ao menor sintoma de inveja – própria ou de terceiro (essa última presumida) – provocada por alguma desigualdade.
Como se vê, isto não é uma aula, é uma iniciação nos mistérios do esquerdismo militante!
Ou seja, no Brasil de hoje, os autores de livros didáticos já não se contentam em fazer a cabeça dos estudantes; eles querem danar as suas almas.
Trata-se, em essência, de uma paródia satânica da parábola dos trabalhadores da vinha, onde Cristo nos ensina, entre tantas outras coisas, que não existe correlação necessária entre desigualdade e injustiça e que é Ele próprio – o justo por excelência – a maior, senão a única, fonte de desigualdades do universo. “Amigo, não fui injusto contigo. Não combinaste um denário? Toma o que é teu e vai. Eu quero dar a este último o mesmo que a ti. Não tenho o direito de fazer o que eu quero com o que é meu?”
Que a palavra “satânica” – o esclarecimento é do filósofo Olavo de Carvalho – “não se compreenda como insulto ou força de expressão. É termo técnico, para designar precisamente o de que se trata. Qualquer estudioso de místicas e religiões comparadas sabe que as práticas de dessensibilização moral são o componente mais típico das chamadas ‘iniciações satânicas’. Enquanto o noviço cristão ou budista aprende a arcar primeiro com o peso do próprio mal, depois com o dos pecados alheios e por fim com o mal do mundo, o asceta satânico tanto mais se exalta no orgulho de uma sobre-humanidade ilusória quanto mais se torna incapaz de sentir o mal que faz”.
Vem daí o sentimento de superioridade moral da militância esquerdista que há mais de trinta anos deposita seus ovos nas cabeças dos estudantes brasileiros, parasitando, como solitárias ideológicas, o nosso sistema de ensino.
Chamo a atenção para a malícia empregada na montagem do experimento (pouco importa se fictício ou real): se a professora houvesse distribuído os doces em conformidade com o desempenho alcançado pelos alunos, eles entenderiam perfeitamente a razão da desigualdade. Dificilmente algum deles se revoltaria. Mas, se isto fosse feito, o tiro sairia pela culatra, pois as crianças também aceitariam com absoluta naturalidade o fato de na sociedade uns ganharem mais e outros menos. Para isso não acontecer, a distribuição tinha de ser gratuita. Só assim o sentimento de inveja (que se pretendia instrumentalizar) não seria contido pela percepção intuitiva de que, por justiça mesmo, uns de fato merecem receber mais e outros menos.
A coisa toda é tão pérfida e tão covarde que somos levados a pensar – sobretudo à vista das perguntas, que parecem haver sido formuladas por pessoas com o mesmo nível de conhecimento e maturidade do público a que são dirigidas – que os autores não têm capacidade para perceber a gravidade do delito que estão cometendo contra crianças totalmente indefesas. Sem descartar essa possibilidade – o que faço em benefício dos próprios autores –, há razões de sobra para atribuir esse crime a uma causa mais profunda e mais geral.
“Hoje em dia – escreve Eduardo Chaves (1)
“o sentimento pelo qual a inveja pretende passar, a maior parte do tempo, é o de justiça – não a justiça no sentido clássico, que significa dar a cada um o que lhe é devido, mas a justiça em um sentido novo e deturpado, qualificado de ‘social’, que significa dar a cada um parcela igual da produção de todos – ou seja, igualitarismo. (...)
Um postulado fundamental da ‘justiça social’ é que uma sociedade é tanto mais justa quanto mais igualitária (não só em termos de oportunidades, mas também em termos materiais, ou de fato). ‘Justiça social’ é, portanto, o conceito político chave para o invejoso, pois lhe permite mascarar de justiça (algo nobre, ao qual ninguém se opõe) seu desejo de que os outros percam aquilo que têm e que ele deseja para si, mas não tem competência ou élan para obter. (...)
A luta pelo igualitarismo se tornou verdadeira cruzada a se alimentar do sentimento de inveja. Várias ideologias procuram lhe dar suporte. A marxista é, hoje, a principal delas. A desigualdade é apontada como arbitrária e mesmo ilegal, como decorrente de exploração de muitos por poucos. Assim, o que é apenas desigualdade passa a ser visto como iniqüidade. (...)
O igualitarismo tornou-se o ópio dos invejosos.”
O que vemos nesse livro de Português – incluído pelos especialistas do MEC no Guia do Livro Didático de 2008 – é a preparação do terreno; é a fumigação que pretende exterminar ou debilitar as defesas morais instintivas das crianças contra o ataque da militância socialista que as aguarda nas séries subsequentes.
Mas, por favor, que ninguém desconfie da bondade desses educadores. Afinal, eles não querem nada para si; são apenas “trabalhadores do ensino” (como eles também gostam de dizer), tentando contribuir para a construção de uma sociedade mais justa. Vejam a Dinah: “ótima professora, simpática, engraçada, bonita também”. Ora, quem somos nós para discordar?
Assim postas as coisas, só nos resta pedir a Deus que proteja as crianças brasileiras da bondade militante dos seus professores.
(1) Eduardo Chaves é professor titular de Filosofia da Educação da Universidade Estadual de Campinas (http://chaves.com.br/TEXTSELF/PHILOS/Inveja-new.htm)
Para ter mais informações sobre o conteúdo do livro ver o artigo do autor no site
3 comentários:
Prof. Walter,
Passei por aqui e passarei sempre. Parabéns pelo blog.
Abraços,
Carlos H.
Obrigado Carlos. Seja bem vindo. Abraços.
Gente ... eu leio seus textos e tenho medo. Você é professor?
"Assim, além de transmitir às crianças uma visão ideologicamente distorcida – e portanto falsa – dos mecanismos de produção e distribuição da riqueza na sociedade e da realidade vivida por uma pessoa pobre"
Visão falsa e distorcida?
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