sexta-feira, 28 de maio de 2021

DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA 19: A RERUM NOVARUM E O DIREITO DE PROPRIEDADE

 Valter de Oliveira

Na encíclica Rerum Novarum de 1891 o Papa Leão XIII analisou efeitos negativos tanto da Revolução Industrial quanto do capitalismo da época. Também tratou do socialismo que se apresentava como solução para os graves problemas sociais surgidos. Era a famosa Questão Social. Nos meios intelectuais católicos havia quem desejasse que o Papa condenasse ambos os sistemas econômicos. Os membros da União de Friburgo, concretamente, tinham pedido "uma condenação do Capitalismo enquanto tal". (1) ) Isso não aconteceu. Aliás, na encíclica o termo não aparece. Leão XIII só fala dos capitalistas, olhados como classe social, mas não trata do capitalismo  "numa perspectiva econômica"

Ao condenar o socialismo o Papa defende a propriedade. Ela é considerada o centro da polémica com o socialismo. 

Sobre a utilidade e as vantagens da propriedade Leão XIII afirma, resumidamente: 

- A propriedade privada é exigida pela natureza do homem enquanto ser racional, principal agente da produção e chefe de família;

- A propriedade particular é uma exigência da ordem social;

Explicando melhor: 

1. A propriedade privada como exigência da natureza humana.

1.1. É Direito do homem racional e livre

Costumamos dizer que "o homem é um animal racional". Como todos os animais tem necessidades materiais, "porque é corpo ao mesmo tempo que espírito. O animal, guiado por seus instintos, contenta-se em fazer suas necessidades imediatas; o homem, guiado pela razão, conhece e tem conta das necessidades futuras; para subsistir apropria-se de bens que lhe assegurarão os dias de amanhã, isto é, dos bens de produção" (2).  

No início da humanidade podemos imaginar a ação de um homem diante da natureza. Há frutos nas árvores, peixes nas águas, animais em vários lugares. De quem são? De ninguém. O homem, para os obter precisa trabalhar. Ao pegá-los deixam de ser comuns e passam a ser seus. Por que? Porque passaram a ser fruto de seu trabalho. Este está na raiz do direito de propriedade.

Com o tempo o homem percebeu que era mais conveniente parar em algum lugar e lavrar o solo. Este não era de ninguém. Depois, com o trabalho nele desenvolvido passou a ser de uma família, de um grupo, de uma tribo. Nasceu a propriedade da terra. 

A encíclica considera que "o Estado Providência, (tal como entendido pelo socialismo revolucionário), não tem direito de chamar a si esta função de previsão pessoal e consciente sem a qual o homem seria frustrado de suas mais nobres faculdades, reduzindo-se a uma condição servil . Na prática, como sabemos, foi exatamente o que aconteceu nos kolkhozes soviéticos. 

Em suma, "O homem, ser racional, consciente e responsável pelo seu futuro, tem o direito de apropriar-se não só dos bens de consumo (frutos, animais) como também de bens de produção (da terra, etc.) em vista de suas necessidades futuras.  

1.2. O homem tem direito aos frutos do seu trabalho. 

Deus criou o homem para que este desse glória a Ele, desenvolvesse uma civilização, embelezasse a natureza. Ora, este dois últimos pontos, especificamente, dependem do trabalho. Por isso S. Josemaría Escrivá lembra que Deus nos colocou na terra para que trabalhássemos. Ao atuar conforme o plano de Deus fazemos Sua vontade e desenvolvemos nossa personalidade. Ora, o que é produzido pelo homem cabe, evidentemente, ao produtor. Daí dizer Leão XIII na RN: "Do mesmo modo que o efeito segue à causa é justo que o fruto do trabalho retorne ao trabalhador". Sempre? Não. Quando o homem trabalha usando bens alheios (o capital que na verdade é trabalho condensado, acumulado) o produto caberá em parte ao proprietário dos bens e em parte ao trabalhador. Daí surge o problema da repartição entre o que fornece o trabalho e o que entra com o capital. Tudo isso, é claro, desde que se leve em conta a legitimidade dos bens produzidos. Ademais , "o coletivismo priva o trabalhador do direito de apropriar-se dos frutos do seu trabalho. Torna, assim, mais precária a situação do trabalhador". Como vimos no sistema soviético e no chamado socialismo real expropriador "torna mais precária a situação do trabalhador, subtraindo-lhe a livre disposição de seu salário e privando-o de esperança (e estímulo) e possibilidade de assegurar um patrimônio e melhorar sua situação" (3)  (Van Gestel, p.179-180). 

1.3. A propriedade é direito do chefe de família.

Cada um de nós tem direito a fundar uma família. Ao fazermos isso assumimos  "responsabilidade mais graves para o futuro. Temos que pensar na manutenção e educação dos filhos e queremos mais que o necessário para vivermos. Pensamos em uma poupança, em bens para deixarmos para nossos filhos. É nisto que está fundado o direito de herança. É natural. O direito de propriedade é um direito natural. Diz Renard, R,G, em sua obra L'Eglise et la Question Sociale (Paris, 1937, p. 137-138:  (...) "do mesmo modo que nossa natureza animal tende ao alimento; o apetite da propriedade é tão natural à nossa espécie como a fome ou a sede, apenas estes são apetites de nossa natureza inferior e aqueles de natureza superior; todo homem tem alma de proprietário, mesmo os que se julgam inimigos da propriedade: é o que se quer dizer ao afirmar ser a propriedade de direito natural" Citado por  Van Gestel, op. cit. p. 181.

Nesta lógica é que devemos entender a declaração do Papa Pio XII quando diz: "Segundo a Rerum Novarum, a sociedade humana, o progresso da civilização, por uma exigência da própria natureza, não podem existir sem a propriedade privada. Sem ela, e com maior razão, é impensável a existência e o desenvolvimento da família" 

Sendo assim, continua ele, "todas as disposições públicas pelos quais o Estado a regula devem, não só  torná-la acessível e defende-la, mas ainda aperfeiçoar-lhe cada vez mais o exercício" (4).

Interessante ver a profunda relação entre liberdade humana, personalização, propriedade e família. Engels também ressaltou isso ao escrever sobre o assunto sob a ótica marxista. Conforme ele seria preciso destruir as duas instituições. Ambas seriam obstáculos ao socialismo tão desejado. 

No próximo artigo iremos ver a importância da propriedade privada para a ordem social. 

Notas e bibliografia:

1, AUBERT, Roger, & SCHOOYANS, Michel. Da Rerum Novarum à Centesimus Annus. São Paulo, Loyola, 1993, p. 26

2. GESTEL.O.P. Van - A Igreja e a Questão Social. São Paulo, Livraria Agir Editora, 1956, p. 179. 

3. GESTEL. p.179-180

4. GESTEL, P. 183. 



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