domingo, 3 de novembro de 2024

O NEOLIBERALISMO ECONÔMICO FERE A DOUTRINA CATÓLICA?

 


Valter de Oliveira

A pergunta tem uma razão de ser: nos séculos XVIII e XIX as ideias iluministas, que produziram o liberalismo político e econômico, atacaram fortemente a Igreja, e não somente no campo das ideias. Isso se deu principalmente na França onde  muito sangue católico foi derramado. Assim sendo, nada mais natural que encíclicas papais tenham sido duras com a ideologia liberal e denunciado os abusos da economia capitalista durante a Revolução Industrial européia. 

Acontece que as filosofias ou ideologias mudam, ou se adaptam, conforme novas circunstâncias e até oportunismos. Um exemplo é o liberalismo econômico, que inicialmente defendia apenas o Estado "gendarme" (1), mas depois, com o tempo, passou a admitir uma ação efetiva do Estado também na vida econômica. 

Um dos expoentes desse novo liberalismo econômico é Friedrich H. Hayek, um dos pais da chamada Escola Liberal Austríaca. Ele escreveu, em 1944, o livro "O Caminho da Servidão". Neste  defendeu a liberdade humana no campo político, social e econômico opondo-se aos totalitarismos da época: o nazi-fascismo e o comunismo. Curiosamente também criticou o capitalismo intervencionista e pseudoliberal que dominava os EUA e vários países europeus. Tarefa nada fácil dado que o liberalismo, desde 1929, com a famosa queda da Bolsa de valores de Nova York, passou a ser tido como superado e até inaceitável. 

No Brasil a segunda edição deste livro foi publicada pela Globo em 1987. O prefácio é de Adolpho Lindemberg, conhecido por ser um pensador tradicionalista que, apesar de reconhecer algumas lacunas de Hayek no campo religioso, não deixa de ver valores positivos no chamado neo-liberalismo, destacando-se sua rejeição a toda forma de socialismo cuja adoção seria um caminho para a servidão.

Adolpho Lindemberg
Lindemberg afirma peremptoriamente: "seria um erro grosseiro confundir o chamado neoliberalismo econômico com essa heresia tantas vezes condenada pela Igreja". E continua:

"O neoliberalismo, como observa Louis Baudin, um dos representantes máximos dessa escola, rejeita unanimemente o laissez-faire, laissez-passer do século XIX; é um conjunto de correntes de pensamento bastante diversas, cujo traço comum é o respeito pela pessoa humana e a utilização da iniciativa individual como base da vida econômica, uma vez que apenas o mecanismo de preços, funcionando num mercado livre, permite um aproveitamento ótimo dos recursos naturais e dos meios de  produção (cf. BAUDIN, Louis, L'Aube d'un Nouveau Libéralisme, Paris, Génin, 1953. p. 146 e 150. Isso não exclui, mas até supõe a ação do Estado: tanto para proteger o regime de livre concorrência, quanto para administrar a justiça, e para, realizar, subsidiariamente, tudo aquilo que a iniciativa particular não possa fazer. É portanto muito ampla a missão do Estado numa economia neoliberal. Só não é permitido a este, em matéria econômica, desvirtuar o regime de livre concorrência, substituir-se aos particulares em nome de uma deificação dos poderes públicos, intervir no mercado a fim de impor um plano arbitrário concebido apriorísticamente por pretensos "engenheiros" do bem-estar social. É isso o que expõe Hayek tantas vezes, nesta obra, por exemplo às p.77-78 e 115-116 (2). 

"Assim sendo, só uma ignorância total do neoliberalismo - ignorância hoje dificilmente concebível num espírito lúcido e de boa-fé poderia ver algo da heresia liberal naquilo que constitui propriamente  o pensamento econômico de Hayek. Se em algumas considerações colaterais, e de ordem não econômica, dele discordarmos, deveremos ter presente que isso em nada há de afetar a linha-mestra da obra. É útil, aliás, sublinhar aqui que o neoliberalismo não é, de modo algum uma doutrina monolítica, hirta, inflexível. Mas seus partidários fazem questão de ressaltar sempre que, versando sobre uma realidade econômica sumamente complexa e mutável, o neoliberalismo pode e deve admitir em seu seio as interpretações mais variadas, as sugestões mais imaginosamente diversas, desde que se respeite escrupulosamente o princípio fundamental da economia de mercado. E nessa riqueza e liberdade de perspectivas, bem entendidas, não há latitudinarismo doutrinário, nem relativismo metafísico, mas só o bom senso que ensina ser impossível ao homem dogmatizar sobre matéria variável, livre, sujeita à riqueza das manifestações vitais.

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Termino pedindo a opinião dos amigos, especialmente liberais e tradicionalistas. Concordam com Adolpho Lindemberg? Ele interpreta bem a Doutirna Social da Igreja ou deixou-se seduzir pelo novo liberalismo? 

Notas:

1. Estado policial. É um estado que se limita a garantir a ordem e a segurança pública, deixando os dominios sociais e econômicos para a liberdade individual.  Nessa lógica, só para dar um exemplo, não competiria ao Estado nem mesmo estabelecer um salário mínimo regional ou nacional. 

2. Hayek não admite que a propriedade seja um privilégio, afinal todos podem adquiri-la pelas mesmas regras. Quem faz isso priva a palavra privilégio de seu "verdadeiro sentido". p. 77- Na p. 115 são citados casos em que o Estado pode e deve atuar na economia, como, por exemplo, desastres em todos os sentidos: "Sempre que a ação pública não pode defender-se e contra cujas consequências não pode precaver-se, tal ação pública deve, indubitavelmente, ser empreendida". 

Fonte: Hayek, Friedrich August von. "O caminho da servidão". trad. Leonel Vallandro"; 2. ed. São Paulo, Globo, 1977

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