quinta-feira, 27 de maio de 2021

DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA -18 -


SÃO TOMÁS DE AQUINO E A PROPRIEDADE

 

Valter de Oliveira

 

São Tomás discute a questão da propriedade no seu Tratado sobre a Justiça. É nele que o grande santo discute a justiça comutativa e a justiça distributiva.

Pela justiça comutativa definimos o direito de uma pessoa em relação a outra. Um contrato faz parte dela. Através deste discutimos o que é um justo salário, um justo preço ou um justo lucro. Em suma vemos o que é justo ou injusto em relação a um outro. É um sistema de trocas.

Já a justiça distributiva define o “direito de cada pessoa em relação ao conjunto dos que possuem bens não necessários”. Talvez possa se dizer, não tenho certeza, o direito em relação à sociedade. Assim, afirmam Pierre Bigo e Fernando de Ávila, na obra “Fé Cristã e Compromisso Social: “Um pobre não tem direito sobre os bens de determinado rico. Um rico não tem obrigações com relação a determinado pobre. Porém a justiça distributiva cria direitos e obrigações tão estritos como os fundados na justiça comutativa: direito do conjunto dos pobres em relação aos ricos; obrigações do conjunto dos ricos em relação ao conjunto dos pobres” (1).

É bom lembrarmos que na visão católica acima das justiças mencionadas está a chamada justiça geral que tem como fim o bem comum. Dizem os dois autores citados: “ “Ela é a norma que regula a sociedade humana e a vida comum” Santo Tomás de Aquino a chama também justiça legal, porque é por intermédio da lei que normalmente o bem comum é realizado numa sociedade” (p.171).

Fica a pergunta: quando a lei é justa ou injusta?

“na medida em que ou promove o bem comum ou o compromete. A justiça legal tem grande importância, de vez que define todos os direitos e deveres das pessoas na sociedade. É uma virtude geral, porque todos os atos do homem têm um aspecto social e, portanto, estão submetidos à justiça”

Daí “Santo Tomás aplica estes princípios à sociedade. À pergunta: “se alguém é permitido possuir alguma coisa como própria? O Doutor da Igreja não dá apenas uma resposta afirmativa. Responde com uma distinção famosa. Se se chama a propriedade a faculdade de administrar, facultas procurandi, ou de dispensar, facultas dispensandi, os bens são comuns e aquele que os possui deve cede-los facilmente aos que necessitam”

Bigo e Ávila continuam:

“Os bens são de um, mas são para todos. Depois de satisfazer a suas verdadeiras necessidades, o proprietário deve aos demais os bens que lhe sobram, avaliando sempre suas próprias necessidades. (...) o supérfluo é devido aos pobres”

Dito isso os autores reconhecem: “o termo porém é perigoso, de vez que quase nunca se encontra alguém que julgue supérfluo um bem próprio (2). A questão é realmente complexa. Como conciliar uma coisa com outra?

São Tomás vai resolve-la. “Ele intuiu que a apropriação individual não contraria mas complementa a communio bonorum, a comunhão dos bens, a apropriação social em sua destinação universal a todos os homens. Ele parte da observação que a comunidade primitiva dos bens era puramente negativa. Tudo era de todos porque nada era de alguém:

            “A comunidade dos bens é atribuída ao direito natural não no sentido de que o direito natural prescreva que tudo deve ser possuído em comum e nada seja possuído como próprio, mas no sentido de que, segundo o direito natural, não existe distinção de posses, que é o direito resultado da convenção dos homens, o que se origina do direito positivo (3). Daí se conclui que a apropriação individual não é contrária ao direito natural, mas o amplia por intervenção da razão humana” (4). 

Mais à frente os autores afirmam que a contribuição de S. Tomás obteve uma síntese luminosa com o pensamento patrístico. “Ele intuiu que a apropriação individual não contraria mas complementa a communio bonorum , a comunhão dos bens, a apropriação social em sua destinação universal a todos os homens. Parte da observação que a comunidade primitiva dos bens era puramente negativa. Tudo era de todos, simplesmente porque nada era de alguém:

            “A comunidade dos bens é atribuída ao direito natural não no sentido de que o direito natural prescreva que tudo deva ser possuído em comum e nada seja postulado como próprio, mas no sentido de que, segundo o direito natural, não existe distinção de posses, que é o resultado da convenção entre os homens, o que se origina no direito positivo. Daí se conclui que a apropriação individual não é contrária ao direito natural, mas o amplia por invenção da razão humana” (Summa Theologica, IIa-IIae, questio 66, art2, ad 1) (5).

Tanto na Idade Moderna quanto na Contemporânea grandes pensadores católicos e papas vão se ocupar da questão da propriedade tendo em vista as grandes transformações econômicas e sociais que sofreu a sociedade bem como novos sistemas econômicos e regimes políticos. A influência de todos eles vai contribuir fortemente pelo que chamamos hoje de Doutrina Social da Igreja.

Um tema de grande importância em nossos dias é ver se há possibilidade de conciliação entre o pensamento tomista e a existência de uma economia de mercado.

É o que veremos em outros artigos (6).

 

Notas:

1.    BIGO, Pierre, ÁVILA, Fernando Bastos. Fé Cristá e Compromisso Social. Elementos para uma reflexão sobre a América Latina à luz da Doutrina Social da Igreja. 2ª ed. revista e aumentada. São Paulo, Paulinas, 1983, p. 171. Bigo e Ávila são historiadores jesuítas.

2. Op. cit. p. 171.  Creio que para a maioria das pessoas a questão é realmente complexa. Temos dificuldades em ver como conciliar o ensinamento com a prática. Digamos que eu já tenha mais do que o necessário para uma vida até cômoda. Tenho o direito de fazer uma poupança para começar um negócio ou devo dá-la aos pobres? Aparentemente, se seguirmos ao pé da letra a recomendação ficaria inviabilizado uma série de investimentos na sociedade. Ora, investimentos exigem poupança e, aplicados produtivamente geram empregos. Consequentemente diminui o número de pobres elevando o  padrão de vida de todos. Tudo isso será abordado e aprofundado na Doutrina Social da Igreja.  

3. Direito positivo é todo o direito escrito pelos homens. Conforme a visão religiosa cristã os mandamentos fazem parte da lei divino-positiva já que foram escritos e dados por Deus a Moisés. Tendo tudo isso em vista a filosofia católica também ensina que as leis humanas não são absolutas; elas devem ser conformes à lei natural e às leis divino-positivas. Fato negado por todas as ideologias laicistas. Conforme estas as leis são apenas a expressão da vontade popular ou dos governantes.

4. Op.cit. p. 172,173.

5. Op. cit. 172,173.

6. Uma observação sobre este ponto, antecipando o que vamos apresentar mais tarde: Um amigo pessoal meu, Ubiratan Jorge Iório, defende que uma economia de mercado é conforme o pensamento católico, em especial levando-se em conta as contribuições da chamada escolástica tardia. Outro amigo, de FB, André Borges Uliano, que ainda não tive a alegria de conhecer pessoalmente, escreveu excelente artigo sobre o assunto.  É texto claro e profundo que merece ser lido por  quem queira aprofundar o estudo da doutrina social da Igreja. O título é “A Doutrina Social da Igreja Católica e a teoria do Livre Mercado: Pontos de Convergência”. Ver no link:

file:///C:/Users/user/Downloads/1129-Article%20Text-2785-3-10-20190906.pdf