sexta-feira, 16 de outubro de 2020

DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA. A GÊNESE DA PROPRIEDADE - 14

 

                                                                                                                  


 






Valter de Oliveira


Muitas vezes lemos as expressões: a propriedade é sagrada; a propriedade é um direito absoluto; a propriedade é inviolável.

Tudo isso pode ser aceito desde que entendamos como as palavras estão sendo usadas.

No caso da encíclica Fratelli Tutti, recentemente promulgada pelo Papa Francisco, houve quem não entendesse o texto - O Santo Padre disse que a propriedade não era um direito absoluto e nem inviolável-  e tenha chegado a dizer que ele, neste ponto, tomara uma posição socializante, socialista ou até comunista.

Como dissemos em artigo anterior a confusão vem da falta de conhecimento da Doutrina Social da Igreja e da teologia. Na verdade, acontece também, porque muitos não têm certas noções básicas de direito, de ciência política, de história. Muitas vezes não têm culpa disso. Estão mergulhados em um mundo confuso, relativista, manipulador onde não é tão fácil conhecer a verdade. 

Para entendermos melhor toda a questão é preciso vermos qual é a gênese do direito de propriedade. É o ponto que passamos a abordar.

Começo a explicar o assunto tendo como fonte um livro de Doutrina Social da Igreja intitulado “A Igreja e a Questão Social”. Eu o escolhi porque foi publicado no Brasil em 1956. Na Europa foi em 52. Só para que não se diga que determinados ensinamentos são frutos do Concílio Vaticano II ou dos Papas “modernos”. Comecemos pela relação que o autor, o dominicano Van Gestel, faz entre “Direito Divino e humano de propriedade”:

“Somente Deus é, em todo sentido da palavra, senhor e proprietário de tudo que é criado. A Ele só pertence a terra e toda sua plenitude. Este direito humano e fundamental de propriedade lhe é devido porque tudo criou e tudo mantém na existência pela ação contínua de sua providência. São seus títulos de propriedade”. 

E continua:

“Desta verdade básica segue-se, tanto para a razão como para a fé, que a posse humana é apenas um direito de uso da propriedade de Deus, uma gerência do domínio divino. Assim, no uso e na administração dos bens cuja gestão Deus lhe confiou, o homem deve se conformar com as prescrições divinas”  (1) 

Sabemos que para ajudar o homem a cumprir o plano divino aqui na terra, de modo a fazer seu trabalho, realizar-se, atingir seu fim último, Deus nos concedeu a lei divina e a lei natural.

Mesmo os que não tiveram a graça de receber a revelação do Antigo e do Novo Testamento tem um caminho, uma luz que vai ajuda-lo: a lei natural. É através dela que os planos divinos são transmitidos ao homem. É também graças a seus efeitos que o homem se relaciona com os outros e toda a natureza e percebe o modo como pode legitimamente submete-la dentro de uma correta escala de valores.

Estas breves considerações são o fundamento filosófico do direito de propriedade.


Descendo ao concreto

Destinação Universal dos Bens (2)

 

Comecemos com algumas questões simples: o ar, a luz, a terra, o conjunto da natureza? De ninguém, ou melhor, de todos. E o alimento? De quem são os vegetais e os frutos, os peixes e os animais? De quem é a terra? De ninguém especificamente.  A expressão latina para expressar tal verdade é: "res nullius". Coisa de ninguém. Contudo, o que é de ninguém é de todos...

Aqui, a Igreja coloca um dos princípios de sua doutrina social, o princípio do "Destino Universal dos Bens". Todos "são ordenados às necessidades do gênero humano!"

Tais ideias – ou tese – diz Van Gestel, está de acordo com as tradições constantes da doutrina da Igreja. São Tomás a proclama com insistência na Suma Teológica e os Papas, desde Leão XIII têm insistido nela.

Agora surge a questão: se é assim, como o homem se apropria das coisas?

É evidente que não é a natureza quem vai assinalar “quem é proprietário deste ou daquele bem”. Tivemos e temos casos de apropriação por grupos ou comunidades. Povos caçadores partilham sua caça. Outros tiveram glebas em comum. Nada disso é contra o direito natural. O bem comum está sendo alcançado conforme sua circunstância histórica.

A questão que se coloca é quanto à apropriação individual dos bens. Tema que desenvolveremos no próximo artigo. De momento achamos mais conveniente explicarmos como o homem se apropria dos bens da natureza.

 

Propriedade e trabalho

 



O homem, ser racional, sabe quais são suas necessidades de sobrevivência. Percebeu que para sobreviver pode pescar peixes; coletar frutos e legumes; caçar animais e aves. Mas, para isso, uma coisa é necessária: o trabalho humano. A propriedade nasce do trabalho. O capital também. 

Quando o ser humano dedicou-se à agricultura percebeu que seria preciso parar em um determinado local e trabalhar nele. Pelo menos por um certo tempo.  Aí, aquilo que ali era produzido, passava a ser de um grupo, de uma comunidade, com exclusão de outros que ali não trabalharam. Aqui destacamos um ponto fundamental ensinado pelos filósofos do direito natural: “o homem, ser racional, consciente e responsável pelo seu futuro, tem o direito de apropriar-se não só de bens de consumo como também de bens de produção, em vista da satisfação de suas necessidades futuras”  (3).

E o roubo?

Um índio, com um arpão ou rede, coleta alguns peixes. Coloca-os em um cesto e se afasta para coletar mais alguns. Índios de uma outra tribo se aproveitam do descuido e levam os peixes e o cesto. Roubaram? Sem dúvida. Mas não pegaram o que era de todos? Não, pegaram um bem que foi fruto do trabalho de outrem. Na verdade roubaram seu trabalho. O primeiro índio trabalhou e ficou sem nada. Para si, para sua família, para sua tribo.


Hoje, na sociedade moderna, trabalhamos e recebemos um salário. O que é este? É nosso trabalho “condensado”, “materializado em” forma de dinheiro. Quando um ladrão o assalta e leva embora seu salário do mês levou embora todo seu trabalho, todo seu fruto. Aí o criminoso é pior que um escravocrata. Este, explora um ser humano, retira todo o fruto de seu trabalho. Contudo, bem ou mal, ainda lhe concede alimento e moradia.

Nessa ótica é bom lembrarmos o que ensina a moral católica quando diz que não pagar ou defraudar o salário de quem trabalha é um "pecado que brada aos céus". 

Negar o direito de propriedade é negar o próprio homem e sua liberdade.

Notas:

1. Gestel, Van O.P. A Igreja e a Questão Social. trad. Pe. Fernando Bastos de Ávila, S.J. Rio de Janeiro, Agir, 1956, p. 174. 

2. Os princípios da Doutrina Social da Igreja, DSI, são os seguintes: O Princípio do Bem Comum; A Destinação Universal dos Bens; o Princípio de Subsidiariedade; o Princípio de Participação; O Princípio de Solidariedade.

3. Gestel, op. cit. p. 179


terça-feira, 13 de outubro de 2020

DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA E PROPRIEDADE (13).

 

 

A confusão sobre o pronunciamento do Papa Francisco

                                                                                                                Valter de Oliveira

 

Tudo começou quando a mídia publicou a seguinte frase do Santo Padre:

“A tradição cristão nunca reconheceu como absoluto ou intocável o direito à propriedade privada, e salientou a função social de qualquer forma de propriedade privada”


Muitos julgaram o texto surpreendente, ou melhor, decepcionante, errado.  Especialmente gente que utilizou os meios sociais para expressar seu desacordo. Os mais nervosos chegaram a chama-lo de comunista... Entre estes vi alguns fazendo questão de afirmar que eram católicos mas que não podiam deixar de protestar ao ver um Papa proferir palavras que eram contra o ensinamento da Igreja! Aí os escandalizados resolveram escandalizar outros.

Surge a questão: um católico não pode protestar contra autoridades da Igreja?

Protestar não é a palavra mais adequada mas, sem dúvida, ela permite que os fiéis possam se expressar. Evidentemente com o respeito e a reverência que devemos ter diante dos sucessores dos apóstolos. Reverência ainda mais necessária quando nos dirigimos ao representante de Cristo na terra. (1) A importância da participação dos leigos na igreja, inclusive pedindo explicações ou providências á hierarquia, foram particularmente afirmados no Vaticano II. Há também documento da CNBB a respeito.

Isso quanto à forma. Quanto ao conteúdo ele precisa entender bem do assunto tratado e precisa - com a razão e a fé - expor no que a autoridade legítima possa ter se equivocado.

Infelizmente muitos protestos não tiveram nada disso. Erraram. E muito.

 

Primeiro ponto: As palavras citadas são a reprodução do que o Papa dissera na encíclica Laudato Si de 2015, no ponto 107. Depois cita outros dois Papas, Paulo VI e João Paulo II. Cita também o manual de Doutrina Social Católica, ponto 172, publicado pelo Conselho Pontifício Justiça e Paz por ordem de João Paulo II em 2004 e que explica muito bem toda a questão.  

Segundo ponto: tal ensinamento não é só dos últimos Papas. É doutrina constante da Igreja.  

Agora vejam o texto completo do ponto 120 da encíclica Fratelli Tutti:

120. Faço minhas e volto a propor a todos algumas palavras de São João Paulo II, cuja veemência talvez tenha passado despercebida: «Deus deu a terra a todo género humano, para que ela sustente todos os seus membros, sem excluir nem privilegiar ninguém».[94] Nesta linha, lembro que «a tradição cristã nunca reconheceu como absoluto ou intocável o direito à propriedade privada, e salientou a função social de qualquer forma de propriedade privada».[95] O princípio do uso comum dos bens criados para todos é o «primeiro princípio de toda a ordem ético-social»,[96] é um direito natural, primordial e prioritário.[97] Todos os outros direitos sobre os bens necessários para a realização integral das pessoas, quaisquer que sejam eles incluindo o da propriedade privada, «não devem – como afirmava São Paulo VI – impedir, mas, pelo contrário, facilitar a sua realização».[98] O direito à propriedade privada só pode ser considerado como um direito natural secundário e derivado do princípio do destino universal dos bens criados, e isto tem consequências muito concretas que se devem refletir no funcionamento da sociedade. Mas acontece muitas vezes que os direitos secundários se sobrepõem aos prioritários e primordiais, deixando-os sem relevância prática. (2) 

Fica uma pergunta: quantos que saíram criticando o Papa pelas redes sociais leram  a encíclica? Ou pelo menos o texto? Quantos já leram pelo menos um livro de Doutrina Social da Igreja? “Argumentam” baseados em quê?

Não sei. O que sei é que nas próximas postagens vou explicar porque o texto acima é conforme o que sempre foi ensinado cristalinamente pela Igreja. 

1. A importância da participação dos leigos na igreja, inclusive pedindo explicações ou providências á hierarquia, foram particularmente afirmados no Vaticano II. Há também documento da CNBB a respeito. Tal participação é até estimulada.

2.http//www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20201003_enciclica-fratelli-tutti.html



sábado, 3 de outubro de 2020

BOLSONARO, ELEITORES E A INDICAÇÃO DE KASSIO NUNES AO STF

 

Valter de Oliveira

            Desde a campanha eleitoral os eleitores de Bolsonaro sonhavam com o início de mudanças na composição do STF. O candidato acenou com a futura indicação de Moro, baluarte na campanha contra a corrupção política no Brasil.

            Muita gente ficou entusiasmada.

            Certos entusiasmos fazem parte da cultura brasileira. Já acontecera antes com a atuação do ministro Joaquim Barbosa quando este criticou seus colegas que teriam negado coisas evidentes no processo do mensalão (1).  Bastou para que muita gente pensasse em lançá-lo como candidato a presidente.

            Na verdade falta visão de conjunto. Certas posturas acertadas de certos atores políticos em determinada ocasião não nos garantem que acertarão em muitos outros pontos. Temos que saber o que eles pensam sobre muitas outras coisas e se são coerentes entre teoria e prática.

            A divergência Moro-Bolsonaro provocou frustração entre os eleitores de Bolsonaro que se dividiram. As faíscas prejudicaram a ambos. Perdeu também o Brasil com a não indicação de Moro?

            Descartado o antigo ministro falou-se em novos nomes que poderiam ser indicados. Esperava-se a indicação de alguém com grandes qualidades jurídicas, ilibada reputação, coerente, identificado com os valores conservadores desejados por grande parte da população e, principalmente, na capacidade de aplicar a justiça. (2)

            Repentinamente surgiu o nome do desembargador Kassio Nunes, do Piauí. Houve quem dissesse que era só balão de ensaio para sentir a opinião do eleitorado do presidente. A base não gostou. Expressou isso claramente.

            Apesar disso Kassio foi indicado. Conforme as notícias com as bênçãos de Toffoli, Gilmar Mendes e do Centrão.  Indicação também recebida com agrado pela bancada nordestina.

            Prevaricação do presidente? Pragmatismo político? Sagacidade maquiavélica?

            Eleitores mais fiéis afirmam que Bolsonaro sabia que outros nomes não seriam aprovados. Assim teria acertado em indicar quem é mais próximo e toma tubaína com ele.

            De minha parte preferiria a indicação de Ives Gandra Martins Filho. Mas, vejam só, como o jurista é numerário do Opus Dei isso já seria uma coisa difícil de engolir. A entidade seria ultraconservadora ou até franquista, como insistem em afirmar os pseudoinformadores.

            Fingem que não sabem que o Opus Dei, tal como a Igreja, não impõe um credo político. Só o que se pede é que seus associados sejam fiéis ao ensinamento católico.

            Contudo nada disso interessa à nova inquisição laicista revolucionária.

            Se Bolsonaro tivesse indicado Ives Gandra teria demonstrado a coragem de Trump. O Chefe de Estado norte-americano que é presbiteriano, sem pestanejar, indicou para a suprema corte americana uma jurista católica com seis filhos.

            Verdade que lá os republicanos têm a maioria do Senado. A indicação provavelmente será aprovada. E aqui? Quem garante que nossos nobres senadores estão ávidos para indicar um conservador? Mesmo assim, cabe a pergunta: teriam a coragem de rejeitar quando jamais fizeram isso no passado?

            Bolsonaro, que ao contrário do que se imagina conhece os bastidores da política, pode ter informações que desconhecemos. Resolveu ser pragmático. Acertou?

            Kassio Nunes certamente será indicado. Votará bem? Irá contra a corrente? O futuro dirá. Confesso que minha esperança não é grande.

            É sabido que a política é a arte do possível. Ela não é fácil.

            De qualquer modo o presidente sabe que não agradou sua base. Esperava-se mais dele neste momento. Prometeu-se muito. Por enquanto, infelizmente, o episódio lembra o famoso caso do parto da montanha.

 

Notas:

1.    http://g1.globo.com/politica/mensalao/noticia/2014/02/barbosa-critica-absolvicoes-e-diz-que-nacao-tem-que-estar-alerta.html

 

2.    Editorial da Gazeta do Povo do dia 02 de outubro p.p. indica detalhadamente  - e com todo acerto - as qualidades necessárias a um magistrado do STF.

 

https://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/editoriais/kassio-marques-stf-bolsonaro-tiro-no-escuro/?fbclid=IwAR1lBTTujRuH8DmPZFpcGRrMHeGv5B-14wSeK_1pjNnzU914LyYQam