quinta-feira, 30 de abril de 2020

DSI - 5. O LIBERALISMO ECONÔMICO OU CAPITALISMO



Valter de Oliveira



Liberalismo econômico é sinônimo de capitalismo. Sistema econômico que podemos tentar compreender  a partir de seus princípios básicos ou através do seu processo histórico.


Os princípios


Basicamente podemos dizer que o capitalismo tem 6 princípios:

1. Defesa da propriedade. Não só a propriedade de uso. Esta praticamente existiu em toda a história nas mais diversas culturas. Entra também o direito à propriedade dos meios de produção. É legítimo que alguém seja dono de uma empresa comercial ou industrial.

2. A livre iniciativa: toda pessoa tem o direito de empreender qualquer negócio lícito. Para alguém abrir uma sapataria, por exemplo, ela não depende da aprovação de uma corporação de ofício, como acontecia na Idade Média e até mesmo na Idade Moderna. Também não está sujeita à antiga teoria do preço justo.

3. A livre concorrência: corolário natural da livre concorrência. 

4. O sistema de assalariado. Com a Revolução Industrial surgiram as fábricas modernas. Muita gente saiu do campo para trabalhar na cidade. O salário, pelo menos em teoria, era livremente pactuado entre patrões e empregados. As condições de trabalho também.

5. A legitimidade do lucro. O capitalismo considera que o lucro é legítimo e justa recompensa ao capital. O lucro obtido vai aumentar o capital e, em grande parte, será reinvestido. Isso, no transcorrer do tempo, vai abrir novas fontes de trabalho e permitir a elevação gradual dos salários. 

6. A não interferência do Estado na economia. Em princípio o Estado deveria se ater ao que era considerado seu papel fundamental: Justiça, Segurança, Educação. Por não atuar na economia ficou conhecido como "Estado-Gendarme". 

O processo histórico

O capitalismo é também uma realidade histórica. Muitos consideram que sua gênese está no final da Idade Média. O marxismo clássico afirma que ele teve três fases: a comercial, a industrial e a financeira. O que a imensa maioria não sabe é que esta é a visão marxista do capitalismo. Nem sonham que haja outras explicações. 

Liberais não consideram que o chamado mercantilismo seja capitalismo. Aliás, este começa a realmente surgir, dizem eles, quando as barreiras mercantilistas vão sendo derrubadas. 

De qualquer modo o capitalismo histórico tem várias faces. Como diz Pierre Bigo  é uma "história muito complexa" Também considera que é "em relação à estrutura e ao espírito da Idade Média, do qual ele se desvincula e onde ele está deslocado, que deve ser estudado" (1) 

A Igreja e o Capitalismo

A Doutrina Social da Igreja posiciona-se tanto quanto aos princípios básicos do Capitalismo quanto ao seu processo histórico. 

Lembremos que a Igreja ensina que toda atividade humana está submetida à moral. Moral que tem como base a Revelação e também a natureza humana. Na Idade Média considerava-se que todos, inclusive o poder temporal, deveriam ser fiéis à lei divino-positiva (ex: os mandamentos), à lei natural e respeitar o direito consuetudinário. 

É sabido que isso vai mudar a partir do Iluminismo e das famosas revoluções liberais.

O posicionamento da Igreja face ao liberalismo, tanto político e filosófico quanto ao econômico, dependerá do que ela tem que enfrentar em determinado momento histórico em diferentes nações. Ou seja, a Igreja irá julgar os acontecimentos com base em sua doutrina e com os matizes devidos às circunstâncias.

A questão social

É comum associarmos a Revolução Industrial e o Capitalismo à chamada questão social, na época, a chamada questão operária. O capitalismo nascente é acusado de explorar brutalmente a classe trabalhadora. Todos lemos como, em muitos lugares, até crianças tinham longos turnos de trabalhos nas mais duras condições. Tudo sem o que chamamos hoje de direitos sociais. 

É importante notar que se bem que a primeira grande encíclica social seja a Rerum Novarum, promulgada por Leão XIII em 1891, a luta dos católicos em defesa do trabalhadores começou muito antes. Temos grandes exemplos na Alemanha, na França, na Bélgica, na Itália. São os chamados católicos  sociais. Curiosamente dividiam-se em 2 correntes. Uma simpatizava mais com a liberdade econômica e desconfiava da ação do Estado. A outra, mais fortemente "social",  chegou a defender a condenação do capitalismo enquanto tal. Leão XIII os conhecia. Decidiu ouvir muita gente antes de elaborar a Rerum Novarum. Não foi fácil. 

É o que veremos a seguir. 


Nota. 1. BIGO, Pierre. A Doutrina Social da Igreja, São Paulo: Loyola, 1969. p. 123.





domingo, 26 de abril de 2020

O HOMEM CONTRA OS MICRÓBIOS (2)





Dia 23 p.p. vimos o prefácio do livro. Hoje vamos ver as considerações finais no cap. XIII. O otimismo já está no título:


VITÓRIA DEFINITIVA NO ANO 2000


"Durante uma alocução pronunciada no Saint-Marys Hospital, em Londres, Sir Alexander Fleming (1) declarava não há muito tempo: - "Há 25 anos raros eram os micróbios dos quais podemos libertar o corpo humano e, hoje ainda existem alguns que nos dão trabalho. Mas estes serão vencidos antes dos anos 2000". Predição otimista, justificada sem dúvida pelas últimas conquistas da Terapêutica servida pela Bacteriologia e pela Bioquímica. 


"A luta vitoriosa contra os inimigos invisíveis foi levada tão longe que seus últimos redutos não nos podem continuar inacessíveis por muito tempo. É impossível, entretanto, prever a gestação das descobertas e das aquisições recentes. Desde hoje em dia permite-se-nos pensar na solução do problema do câncer, encarar a eliminação completa das moléstias infecciosas humanas bem como das moléstias animais que têm graves consequências econômicas para nós, do mesmo modo que as enfermidades vegetais que aprendemos igualmente a combater. Esta luta significa a conservação e o aumento das riquezas do mundo e da vida. Ao ignorabimus  (não saberemos jamais) de Émile du Bois Reymond (2), a esta declaração de impotência resignada, sucederam a fé e a esperança. Mas quais sejam os milagres que nos seja dado assistir, lembremo-nos que foi nos menores de todos os seres vivos que o homem, este "rei da criação", encontrou seus piores inimigos. Durante milênios ele ficou exposto a seus ataques assassinos, fraco e desarmado frente a eles. Todavia, esta vulnerabilidade não era uma fatalidade inexorável, em algumas gerações os homens puseram em xeque e até chegaram a aniquilar temíveis forças naturais". 


Jamais foi feito um combate mais nobre que aquele cujo ganho foi a vida e a saúde dos homens, jamais soldado algum conseguiu vitórias mais nobres". 


Fonte: DRIGALSKI, Wilhelm Von. Coleção Descoberta do Mundo. O homem contra os Micróbios. As doenças contagiosas na história e na vida dos povos. Adaptação de Fernand Lot, Tradução de Heitor Martins, Belo Horizonte, Editora Itatiaia, 1959.




quinta-feira, 23 de abril de 2020

O HOMEM CONTRA OS MICRÓBIOS



Valter de Oliveira


No final do post de ontem disse que hoje iria explicar porque resolvera contar a história do vendedor de livros.

É que nas minhas "andanças" aqui em casa lembrei-me de um livro da coleção  "Descoberta do Mundo", vol. 7. Título: O homem contra os micróbios". Como algumas coleções estão logo aqui, acima de meu computador, foi só pegá-lo. Comecei a folheá-lo. Revi rapidamente explicações sobre doenças contagiosas na história. Modernamente trata dos trabalhos de Pasteur, Koch, Guérin e muitos outros. O último capítulo trata do "Grande Enigma do Vírus".

Contudo, logo de início, duas coisas chamaram-me a atenção: o Prefácio e o Cap. XIII. Este é uma consideração final de apenas uma página. Posto uma parte hoje, a outra amanhã.

Vocês verão que há mais de 50 anos, eu, com meus "pés descalços e braços nus", como diz o poeta, já estava me familiarizando com medicamentos tão falados hoje. Um pouquinho, é claro!


PREFÁCIO


     Os homens esquecem rapidamente... Durante milênios as doenças contagiosas, as "pestilências", fizeram mais vítimas que as guerras mais sangrentas. Quem se lembra disto hoje em dia? Mesmo os historiadores não consagram mais que algumas linhas a fatos tão importantes. Do mesmo modo não insistem mais tempo sobre o que pode significar a extinção deste ou daquele mal. Em seu célebre "Discurso sobre a História", pronunciado em 1932, (...) Paul Valéry - dizia: "Pode-se razoavelmente pensar que a descoberta das propriedades da Quinquina é mais importante que este tratado concluído aproximadamente na mesma época." E, de fato, hoje, "as consequências deste instrumento diplomático podem estar totalmente perdidas e até difusas no caos dos acontecimentos, enquanto que a febre é sempre reconhecível, as regiões palúdicas do globo são cada vez mais visitadas e exploradas e a quinina foi talvez indispensável à prospecção e à ocupação de toda a terra, o que é, a meus olhos, o fato dominante de nosso século".

            São as tropas desarmadas dos pesquisadores -médicos, bacteriologistas, biólogos, bioquímicos - que livraram o mundo do terror dos inimigos invisíveis, ou que pelo menos os colocaram em xeque. Este livro, evocando os grandes flagelos da humanidade é então, ao mesmo tempo uma homenagem àqueles que lutaram, àqueles que, em todos os países do mundo, procuram a vitória da saúde.


Fonte: DRIGALSKI, Wilhelm Von. Coleção Descoberta do Mundo, O Homem contra os Micróbios, As doenças contagiosas na história e na vida dos povos. Adaptação de Fernand Lot, Tradução de Heitor Martins, Belo Horizonte, Editora Itatiaia, 1959. 


quarta-feira, 22 de abril de 2020

O DIA EM QUE O VENDEDOR DE LIVROS FEZ A FESTA


Quarta-feira, 22 de abril de 2020


Valter de Oliveira 


Quando foi? Provavelmente em alguma tarde de outubro ou novembro de 1964. Devia estar jogando bola em frente à venda do sr. Macário, em Itaquera. Não estava. Por esses mistérios da vida estava em casa. A campainha tocou. Era um vendedor de livros...

Convidei-o a entrar. Ficamos no escritório de meu pai, no térreo, ao lado da garagem. Lembremos que eu ainda era um teenager...Passatempo: futebol e música. Bem verdade que eu lia. Desde criança.

Acontece que o vendedor não me oferecia um livro, nem mesmo a Barsa que alguns compravam naqueles tempos e a deixavam descansando na estante. O homem apresentava-me coleções... Imaginem a dificuldade de se vender isso na periferia. Ele devia ter muita fé...

Aí aconteceu outro imprevisto. Meu pai, que geralmente chegava após às 19h apareceu. Cumprimentou-nos e perguntou: -"O que ele quer?" Respondi: - "Está oferecendo alguns livros".  Ele continuou: - "Interessa algum?". -"Todos!". -"Então compre todos!",disse ele.

Foi assim que o vendedor de fé me vendeu 6 coleções:

1.  Descoberta do mundo. Ciência, arqueologia, história, etc,etc. -12 volumes.
2. Antologia da literatura mundial. 12 volumes.
3. Os Forjadores do Mundo Moderno. Heróis latino americanos, filósofos, cientistas, políticos, etc. 6 volumes.
4. Antologia de vidas célebres. Só grandes figuras da antiguidade. 6 volumes.
5. Fábulas de La Fontaine. 3 volumes. 
6. Dicionário Ilustrado da Língua Portuguesa.. 2 volumes. 

Feliz da vida o vendedor anotou a encomenda e foi embora. 

Algum tempo depois, recebi os livros. Uns, no dia 19 de dezembro. Outros, no dia 24. Total 41.

Foi um feliz natal. Como era de praxe ganhei também uma bola de capotão. 

E por que conto isso?

Tudo a ver com o coronavírus. 

Daqui a pouco conto. Aguardem.


domingo, 19 de abril de 2020

CORONAVÍRUS E COEFICIENTE DE SEGURANÇA



Marcelo Guterman


O Brasil atingiu ontem 6,4% de mortalidade pelo coronavírus. Ou seja, de cada 100 casos notificados, 6,4 foram a óbito.
A crítica a este número, muito acertada diga-se de passagem, é que há uma enorme subnotificação da população infectada. Então, a base de cálculo está subdimensionada, o que levaria a uma taxa real de letalidade muito menor. Tão baixa, inclusive, que não justificaria toda essa histeria em torno do assunto. Não passaria de uma H1N1 um pouco mais forte (como sabemos, o índice de letalidade da H1N1 está por volta de 0,1%).
Bem, se o problema é subnotificação, vamos pegar alguns exemplos de países que têm uma notificação exemplar. O caso extremo é a Islândia. Esse pequeno país do Ártico já testou nada menos que 12% de sua população. Só para dar uma ideia do que isso significa, a Coreia, sempre citada como um exemplo de testagem em massa, testou 1% de sua população, enquanto o Brasil testou irrelevantes 0,03%. Pois bem: o índice de letalidade da Islândia é de 0,5%. Portanto, ainda cinco vezes maior que a H1N1.
Outro exemplo é Luxemburgo, um pequeno enclave entre Bélgica, Alemanha e França. Luxemburgo testou 5% da população, o quíntuplo da Coreia. Seu índice de letalidade é de 2,0%, muito semelhante ao da Coreia.
Será então que, uma vez testada toda a população, todos os países convergirão para o índice de letalidade da Islândia (0,5%)? A resposta é não.
O vírus não é um algoritmo que “escolhe” matar 0,5% de quem infecta. O índice de letalidade depende também da resposta dada à doença. Fatores como isolamento social, clima, vacinação anterior, podem influenciar o número de pessoas infectadas. Mas, uma vez infectada, as únicas variáveis que contarão para o óbito do infectado são a agressividade do vírus, a idade/comorbidade do contaminado e a resposta hospitalar. A agressividade do vírus deve ser a mesma no mundo inteiro, a não ser que haja mutações. A idade/comorbidade varia de país para país, mas é facilmente corrigida usando-se as pirâmides etárias de cada país. É na terceira variável que a coisa pega: como comparar o potencial de resposta hospitalar de cada país?
A forma mais simples é comparar leitos de UTI per capita. Quanto maior este coeficiente, melhor será a resposta hospitalar e menor será a letalidade. Mas existe uma outra variável muito mais importante, e de difícil mensuração: o grau de isolamento social. Vejamos um exemplo.
Digamos que dois países tenham 100 leitos de UTI/respiradores para cada milhão de habitantes. Digamos também que, se uma pessoa vai para a UTI, ela tem 75% de chance de se salvar. Por outro lado, uma pessoa que precise ir para a UTI mas não consegue vaga, vai a óbito em 100% dos casos.
Agora, suponhamos que os dois países tenham adotado alguma forma de isolamento social. O isolamento social do primeiro fez com que houvesse 100 pessoas precisando de UTI ao mesmo tempo. Tem vaga pra todo mundo, e 25 morrem. No segundo país, o isolamento social foi um pouco mais fraco, e 110 pessoas precisaram de UTI ao mesmo tempo. Dessas 110, 100 foram tratadas e 25 morreram. E das 10 que não foram tratadas, todas morreram, totalizando 35 mortes. Ou seja: um isolamento social apenas 10% mais fraco levou a um índice de letalidade 40% maior! Em outras palavras, comparar graus de letalidade entre países sem conhecer de perto suas práticas de isolamento social não passa de um tiro no escuro.
Sabemos muito pouco sobre essa doença. Calibrar então o grau de isolamento social necessário para não forçar o sistema hospitalar é mais do que uma arte, é puro chute. Lembro de minhas aulas de resistência dos materiais, em que aprendíamos cálculos complicadíssimos para projetar uma ponte. Depois de muita ciência, colocava-se um tal de “coeficiente de segurança”. Esse coeficiente de segurança é proporcional ao grau de ignorância sobre fatores não antecipados pelos cálculos. Quanto maior a ignorância, maior o coeficiente de segurança. Esse coeficiente de segurança, obviamente, custa dinheiro: significa mais material gasto na construção da ponte. Mas vidas estão envolvidas, então algum coeficiente de segurança é necessário.
No caso do coronavírus, o grau de ignorância é gigantesco. E qualquer erro pode levar à multiplicação do grau de letalidade em várias vezes, como vimos acima. Por isso, entende-se o “coeficiente de segurança” usado pelos gestores públicos no mundo inteiro na adoção do isolamento social.

terça-feira, 14 de abril de 2020

DSI 5. LIBERALISMO RELIGIOSO E POLÍTICO



O LIBERALISMO RELIGIOSO


Ao tratar do tema D. Estevão Bettencourt vai buscar sua origem na Reforma Protestante. Claro que, na época, não se usava a expressão "liberalismo religioso". Na verdade, seu objetivo é mostrar a origem da questão da liberdade religiosa tal como seria entendida, mais tarde, pelos liberais. Eis suas palavras: 

"Lutero proclamou o livre exame da Biblia, ou seja, a recusa de qualquer autoridade visível que orientasse a leitura das Escrituras Sagradas; cada crente deveria perceber dentro de si, pelo testemunho meramente interno do Espírito Santo,o sentido da palavra de Deus. Com isto Lutero deu início a uma nova mentalidade dentro do setor religioso - mentalidade individualista e subjetivista. Eis, porém, que quando a fé no testemunho interno se acentuou (como no protestantismo do século XVIII), cada indivíduo ficou com a liberdade de julgar os valores da Religião sem controle superior à sua própria razão; daí dizer-se que tanto faz abraçar esta ou aquela religião ou mesmo recusar qualquer religião. Em última análise, todas as religiões seriam boas; dir-se-ia que é o homem quem as faz, quem as julga, quem as condena, em vez de ser condenado pela religião".

"Tais ideias repercutiram em certas correntes bíblicas dos sécs. XVIII e XIX, favorecendo exageros nas críticas dos livres sagrados. Em consequência, notáveis autores dedicados ao estudo das Escrituras chegaram a negar a divindade de Cristo". (...)

"Pio IX, no Sílabo, condenou a proposição nº 4, conforme a qual a razão seria a soberana norma para se julgar qualquer tipo de verdade" (1)

(...)

O LIBERALISMO POLÍTICO

E sua ligação com o iluminismo

Tal liberalismo é decorrência dos princípios liberais em filosofia e religião. Na verdade o grande ideal da liberdade passou a ser entendido de modo diverso do que a Igreja sempre ensinara. No campo das leis, por exemplo, ela ensinava que o homem deve obediência à Lei Eterna, à Lei Natural, à lei Divino-positiva (ex: os mandamentos). Mais ainda, o Estado também seria obrigado a seguir todas essas leis. Isso, em grau maior ou menor, será negado pelo liberalismo iluminista que considerava que muito do que a Igreja ensinava era obscurantista. É o  que vemos na seguinte citação:


" ...A vida e os costumes, a sociedade, a economia e a política dependem de "leis naturais"  (1) que a razão humana pode e deve descobrir eliminando os obstáculos dos "preconceitos" acumulados por séculos de ignorância. Se se aplica essas leis, a humanidade verá, enfim, se abrir diante dela uma era de felicidade.  O filósofo (iluminista) é o sábio que procura essas leis e pensa abrir assim o caminho para o futuro".

"Para  o filósofo, o cristianismo é contra a natureza porque ele louva o sacrifício e a submissão; ele ofende a razão pela fé nos mistérios; ele é um obstáculo à felicidade terrestre. Certamente, numerosos filósofos ainda creem em Deus, mas é um Deus longínquo, inacessível, um "grande arquiteto do universo" que não intervém em sua marcha; a oração é para eles ridícula, inútil e absurda. De todos os "preconceitos", o "preconceito" religioso é o mais assustador"  (2)

Em suma, o liberalismo, assim entendido, entrou em choque com a Igreja. Principalmente o de orígem francesa, fortemente anticlerical, que vai ser exacerbado durante a Revolução Francesa.(3) Depois, no século XIX, ele continua sua forte luta contra a Igreja. Esta reage com várias condenações ao liberalismo tanto no campo estritamente filosófico quanto no político e religioso. 

Apesar disso tudo, mesmo nos meios católicos, houve quem defendesse que era possível um liberalismo católico. Um dos mais famosos foi o pensador francês Lamennais. Na época, suas ideias foram condenadas. (4)

E hoje? Não teria havido uma mudança tanto dos liberais quando da Igreja?

É o que veremos depois de explicarmos a posição católica diante do capitalismo.
Notas: 

1. BETTENCOURT, Estevão. Curso de Doutrina Social da Igreja, p. 144.

2. BRELINGARD et alii. Histoire, le monde de1715 a 1870. Paris, Hachette, 1966, p. 26.

3. Como dissemos no começo do primeiro artigo o liberalismo sofreu muitas transformações em seu processo histórico. Liberais, como Antonio Paim, discutem muito bem suas várias faces. Ele critica o liberalismo francês rousseauniano que estaria ligado à fase jacobina da Revolução Francesa. Liberalismo que tinha em suas raízes o totalitarismo. Também faz uma distinção entre liberalismo inglês e democratismo francês.  

4. Lamennais, em política, advogava a separação do Estado da Igreja, a liberdade de consciência, educação e imprensa. O Papa Gregório XVI desautorizou as opiniões de Lamennais na Encíclica Mirari vos, em agosto de 1831. A partir de então, Lamennais passa a atacar o Papado e as monarquias. Foi finalmente condenado na Encíclica papal Singulari vos, em julho de 1834. Foi excluído da Igreja. Na hora de sua morte se recusou a aceitar a reconciliação. 



quarta-feira, 8 de abril de 2020

DSI 4. A IGREJA E O LIBERALISMO



O QUE É O LIBERALISMO?

Introdução



Penso que tive minhas primeiras noções sobre o liberalismo ao estudar história no antigo Ginásio, em 64.  No ano anterior, em sua primeira aula na minha turma, o professor, um homem de uns 30 anos, entrou na sala como um furacão, jogou livros e diários na mesa, e exclamou: -"A primeira coisa que eu quero dizer a vocês é que tudo o que aprenderam até aqui está errado!" Não me contive e disse baixinho para meu amigo Sérgio, no meu lado direito: - "Pronto, mais um louco na escola"... Não era. A frase que disse é que foi um "pouquinho" exagerada...

E lá ficou ele comentando os erros que muitos ensinavam - e continuam ensinando - sobre a Idade Média. Gostei. Nem por isso deixei de contestá-lo, em alguns pontos, por uns seis meses...

Foi com ele, mais tarde que aprendi o que era o liberalismo. Também tive aulas sobre encíclicas sociais, arte, política, religião.  Em horário extra. Para os interessados. 

Mas isso é uma outra história. Voltemos ao liberalismo. Aqui conto algo do que tive na  Universidade. Foi na minha primeira pós-graduação no Mackenzie, no curso de Estudos de Problemas Brasileiros. Foi aí que vim a ter aulas sobre o liberalismo em alto nível. Cito três professores: Antonio Paim, Ubiratan de Macedo - na área de filosofia política  - e  Ubiratan Jorge Iório, na área econômica. 

Paim chamou minha atenção por afirmar que tinha sido marxista. Estava em Moscou contou ele, estudando filosofia, quando Kruchev denunciou os bárbaros crimes de Stalin.  Ficou chocado. Começou a rever suas ideias. Resultado: passou a ser um grande liberal. Até hoje, sua erudição e seu nobre modo de ser atraem liberais de várias correntes. Ele dizia em alto e bom som: - "A esquerda não tem argumentos para nos vencer!" E não tem mesmo! (1)

O professor Ubiratan de Macedo deu uma bela palestra. Eu, com os meus botões pensava: -Interessante mas... em alguns pontos aquilo se chocava com o que aprendera sobre a filosofia liberal. Procurei-o no final da aula e perguntei: - "Na sua opinião, qual a possibilidade de conciliarmos liberalismo com os ensinamentos da Igreja? A resposta foi taxativa: - "Nenhuma"! (2)

Ubiratan Jorge Iório foi outra surpresa. Conseguiu duas proezas: falar de modo absolutamente agradável de economia e fazer com que, de lá pra cá, me interessasse pelo assunto. E vem o mais importante: ficamos amigos. Pena que ele more no Rio e eu em São Paulo. 

Outra coisa curiosa: um dia, durante o curso, convidei-o para almoçar em minha casa. Lembro-me claramente de duas frases dele: -"Puxa,você é o primeiro professor de história que conheço que não é marxista". A outra surgiu quando comentei pontos da doutrina social da Igreja: - "Não entendo porque a Igreja critica o liberalismo". 

Este e outros pontos é o que vamos começar a ver. 


O conceito de liberalismo


Conforme o prof. Ubiratan Jorge Iório, ardoroso defensor da Escola Austríaca de Economia Liberal, "o liberalismo é um fenômeno histórico complexo e difícil de definir. Reflete a diversidade histórica, da mais antiga à mais recente e moldou o Ocidente moderno. Nasceu como um protesto contra os abusos do poder estatal, exigindo limitação e divisão da autoridade. (3)

Vejamos, agora, o que diz D. Estevão Bettencourt O.S.B. em seu Curso de Doutrina Social da Igreja.

"O liberalismo (é) uma corrente de pensamento que afirma o valor da liberdade humana de modo tal que a cada cidadão toca o direito de conceber a Verdade, o Bem e a Religião segundo o seu próprio alvitre, independentemente de qualquer tutela ou autoridade. (p.139)

Mais à frente ele diz: 

(...) "O liberalismo constitui uma tendência ou uma atmosfera muito mais do que um sistema ou uma escola de pensamento.

"Essa tendência se distingue primariamente pela intenção de desligar a liberdade humana de qualquer lei ou autoridade que não seja puramente humana ou até... que não seja do próprio sujeito. Atribui pois,à razão a capacidade de discutir todos os valores, remover o que ela julgar inaceitável e erguer o que ela considerar oportuno. Em particular o Liberalismo não reconhece autoridade religiosa sobrenatural, como afirma o catolicismo: ... autoridade que mereça acato e respeito independentemente dos valores humanos (virtude e sabedoria) de seus representantes".

"Aliás, continua, esta premissa é essencial para que possa existir Liberalismo: tudo é humano e meramente humano. Por isto, tudo é relativo, tudo é imperfeito. Nada, por conseguinte, nem mesmo a religião, merece adesão incondicional do homem. Daí se compreende que o Liberalismo acarrete o indiferentismo , ora mais, ora menos acentuado: implantando-se numa sociedade, cedo ou tarde solapa as energias coletivas e o heroísmo das atitudes(op.cit. p. 143). 

Facetas da mentalidade liberal aplicada às "expressões da cultura"

Continua D. Estevão:

1. Liberalismo filosófico e racionalismo

"É a tendência a rejeitar no campo filosófico (ou no modo de encarar o mundo e a vida) qualquer tutela que não seja a própria razão humana".

Tal tendência passou a crescer, diz ele, a partir de Descartes (+ 1650). "A razão humana, em consequência, negou qualquer limite no exercício da reflexão,  pretendendo julgar tudo, até mesmo as verdades religiosas. A possibilidade de dogmas de origem sobrenatural, não derivados da razão, foi, de antemão, negada: (4) o homem bastaria a si mesmo (auto-suficiência do pensamento humano).  As correntes filosóficas contemporâneas não cristãs, por mais contrárias que sejam entre si, supõem todas tal ponto de partida: assim o criticismo, o idealismo, o positivismo, etc. 

"Bons críticos modernos observam que nessa posição filosófica está latente uma certa contradição: o Liberalismo, que rejeita o dogma, de antemão admite um dogma - o dogma de que não pode haver autoridade ou tutela que transcenda a razão humana. Sem provas e gratuitamente, o pensador liberal se vincula a este pressuposto, cerceando sua liberdade dentro do seu imanentismo ou da sua auto-suficiência"(p. 143).

Por hoje paramos por aqui. Falta-nos abordar o liberalismo religioso, o político, o econômico e o artístico.  Vamos ver também como a Igreja foi se postando diante do desenvolvimento histórico do pensamento liberal.  Até mais. 

Notas:

1. As aulas foram em 88 ou 89. Ainda havia a Europa comunista. O muro de Berlim caiu em 89 e a URSS desintegrou-se em dezembro de 91. O que não é natural não tem como subsistir. Alguns pensaram, e disseram, que era o fim do comunismo. A realidade é mais complexa. 

2. Ubiratan Iório afirma o oposto! Cito fonte no próximo post. 

3. Veja aqui a íntegra do artigo. Nele é explicado os vários tipos de liberalismo, de suas orígens aos dias de hoje.  https://www.ubirataniorio.org/index.php/artigo-do-mes/392-fev-2020-liberalismo-a-la-carte-ou-o-meu-liberalismo-e-maior-do-que-o-seu-mane

4. Destaque do blog olivereduc.blogspot.com