domingo, 15 de novembro de 2020

DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA 16. DIREITO DE PROPRIEDADE E PADRES DA IGREJA

 


Valter de Oliveira

 



A partir de 1965 costumava comungar à noite na igreja de Nossa Senhora do Carmo, no centro de Itaquera. O pároco, padre João, era espanhol. Cuidava da paróquia e também dava aulas de religião para o ensino médio no colégio Emília de Paiva Meira. Era progressista, mas tinha bom conteúdo, o que atraía minha atenção. Por isso mesmo ia ouvir suas preleções antes da missa.

Certo dia ele decidiu explicar o ensinamento dos Padres da Igreja sobre as riquezas e o direito de propriedade. Novidade para mim. No final ele concluiu que, conforme Santo Ambrósio, enquanto houver uma pessoa passando fome na terra, não há direito de propriedade... (1)

Fiquei perplexo. Comentei com um amigo. Concordamos que, se fosse realmente assim, ninguém hoje teria direito à propriedade, dado que há uma infinidade de gente passando fome. Não fazia nenhum sentido (2).

A perplexidade tinha uma explicação. Eu havia começado a ler encíclicas sociais no final de 1964 e já tinha lido a Rerum Novarum.  Sabia que Leão XIII condenara os males da Revolução industrial que provocaram a questão social operária, os erros iluministas e liberais e clamava para que fosse feita justiça aos trabalhadores. Contudo, ao mesmo tempo, ele havia afirmado que era falsa a suposta solução proposta pelo socialismo. Este, afirmou o Papa, só deixaria os trabalhadores ainda mais miseráveis.

De qualquer modo não esqueci da afirmação do padre João sobre os Padres da Igreja.

Algum tempo depois vim a ter um contato indireto com textos patrísticos ao começar a ler livros sobre a doutrina social da Igreja. Não era muito diferente do que ouvira naquela noite em Itaquera. Com efeito, muitas das afirmações que fazem podem causar estranheza e exprimem ideias que precisam ser entendidas e contextualizadas. Seguem alguns exemplos.

Textos de Padres da Igreja


Comecemos citando S. Basílio, que Pierre Bigo considera o mais “economista” dos padres gregos.

“O que despoja um homem das suas vestes terá nome de ladrão. E o que não veste a nudez do mendigo, quando pode fazê-lo, merecerá um outro nome? Ao faminto pertence o pão que tu guardas. Ao homem nu, o manto que fica nos baús. Ao descalço, o sapato que apodrece na tua casa. Ao miserável, o dinheiro que tu guardas enfurnado (3).



Agora um texto de S. Ambrósio:

“Não deveis dizer: “Eu gasto o que é meu, eu gozo daquilo que é meu”. Não: não daquilo que é vosso, mas daquilo que é de outro. Esses bens não vos pertencem: pertencem em comum a vós e a vossos semelhantes, como são comuns o céu e a terra e tudo o mais. (4).

Em princípio, não há como não reconhecer que os textos assustam. Basta imaginar o que diriam deles se tivessem sido pronunciados pelo Papa...

De qualquer modo julgo importante vermos, mais do que a letra, o espírito que os Padres procuravam incutir em seus fiéis.

Outro texto interessante é de S.Basílio que faz uma comparação baseada em Cícero, a do egoísta no teatro:

“Tu és semelhante ao homem que, reservando uma vaga no teatro, queria impedir os outros de entrar e desejaria gozar só de um espetáculo, ao qual todos têm direito. Assim são os ricos: dos bens comuns que abarcaram, eles se decretam donos por terem sido seus primeiros ocupantes”. (5)

Mas, voltemos à questão. Como conciliar tais posicionamentos com o direito particular de propriedade? Os autores que pesquisamos concordam que tais leituras precisam ser feitas corretamente.

Pierre Bigo aborda outro ponto que vai dar um matiz à questão:

 Mas existe também o direito de posse. Sobre esse ponto os Padres são também unânimes. Os ricos podem salvar-se. Ao redor do ano 200, Clemente de Alexandria o afirmou numa célebre homilia (6) (na qual explica como o rico pode ser salvo) e a lição será muitas vezes retomada. Mas ele busca a salvação do rico na linha que será de todos os Padres: o desapego do coração e a renúncia real aos bens que ultrapassem as necessidades pessoais”

Camacho também aprofunda a questão quando discute a questão dos bens materiais

“Os Padres (...) não consideram os bens materiais maus em si. (...) Tomemos como paradigma a sugestiva argumentação de S. Basílio. Para ele, os bens são naturalmente bons, primeiro porque foram criados por Deus e, segundo, porque “o mandamento de Deus não nos ensina que devemos rechaçar os bens e fugir deles como se fossem males, mas que os administremos”. Portanto “aquele que se condena, não se condena absolutamente porque possuía bens, mas porque avaliou erradamente o que tinha e não o usou bem” (7).

Camacho vai sintetizar a questão relacionando a visão dos Padres com o problema de nossa natureza decaída:

“A doutrina dos Padres da Igreja, com relação à propriedade, pode ser resumida nos seguintes termos: a intenção primeira de Deus era a destinação de tudo a todos. O que era de direito natural era a apropriação social. A apropriação pessoal, na mente dos mesmos Padres, era uma derrogação da lei primitiva, derrogação exigida pelo pecado.

Deus destina os bens da terra à fruição de todos os seus filhos. Mas essa fruição pacífica tornava-se impossível pelo pecado, que desperta no homem os instintos egoístas. A apropriação coletiva dos bens pelo homem inocente transformava-se numa causa de tensões intoleráveis entre os homens marcados pelo pecado, ameaçando a própria sobrevivência da espécie que emergia para a grande aventura humana  (8)

Os Padres escreveram quando ainda vigia o Império Romano baseado, entre outras coisas, na escravidão. Naturalmente não tinham uma série de conhecimentos de economia que temos hoje. Contudo, não temos dúvida em afirmar, que suas preocupações sociais, mais a evangelização dos bárbaros, e o papel desempenhado pela Igreja na derrocada do Império Romano, contribuíram para que fosse sendo mudado e humanizado o direito e o uso da propriedade. Se na Antiguidade havia uma enorme população de escravos, depois, na Idade Média, eles gradualmente tornaram-se servos da gleba e tinham determinados direitos reconhecidos. E depois do ano 1000 aumentou consideravelmente o número de homens livres e proprietários.

De qualquer modo os manuais de doutrina social da Igreja afirmam que será S. Tomás quem conseguirá harmonizar os pontos aparentemente divergentes do ensinamento dos Padres.

 

Notas:

1.    Chamamos de «Padres da Igreja» (Patrística) aqueles grandes homens da Igreja, aproximadamente do século II ao século VII, que foram no Oriente e no Ocidente como que «Pais» da Igreja, no sentido de que foram eles que firmaram os conceitos da nossa fé, enfrentaram muitas heresias e, de certa forma foram responsáveis pelo que chamamos hoje de Tradição da Igreja; sem dúvida, são a sua fonte mais rica. (https://cleofas.com.br/os-santos-padres-da-igreja )

2.      Em nossos dias, quando se fala em direito de propriedade rejeitado pelo socialismo e pelo comunismo não estamos nos referindo a bens de uso, bens pessoais, que não são negados por praticamente ninguém, mas a que ficou conhecida como propriedade privada dos bens de produção. Por exemplo uma indústria, uma rede de comércio, o agronegócio, a padaria da esquina. Tivemos países socialistas que não aboliram pequenas e médias propriedades. Razão tática, não de princípios.

3.      Homilia6. Contra a riqueza. 7. “Ricos e pobres”,pág. 76.pág 31, 277. In Pierre Bigo: a doutrina social da Igreja, São Paulo, Loyola, 1969, p. 41, 42,

4.      Homilia 10, PG 61, 86 in Pierre Bigo..op.cit.,p. 42.

5.      Hom. 6.6. in Pierre Bigo, op. cit, p. 42.

6.      ( Homilia “Que rico pode ser salvo” ver Bigo op.cit.,p. 44,45) – a frase entre parênteses e em negrito é do site para dar maior clareza.

7.      ). (13, S. Basílio, regras breves, in Práxis Cristã, Opção pela justiça e liberdade, São Paulo, Paulinas, 1988, p. 55).

8.      Pierre Bigo e Fernando Bastos. Fé Cristá e Compromisso Social, 2ª edição, São Paulo, Paulinas,1993, p. 172.