Valter de Oliveira
Meu amigo Theresiano, colega na docência do colegial e da universidade, é matemático mas tem uma simpática abertura para a área de humanas. Interessa-lhe conhecer pontos importantes da história e da cultura. Assim, após ter lido o artigo "Marxismo 1", que aqui postamos na semana passada, enviou-me a seguinte mensagem:
"Sempre aprendi que Marx não pregava o advento imediato do comunismo, mas sim uma fase de transição, que viria a resultar no socialismo e, posteriormente, no comunismo. Estou certo em minhas lembranças? Mas vi que seu artigo explicita o processo metódico de estatização, onde os comunistas, aliados aos ditos democratas e reformistas, criariam as condições propícias para a implantação do chamado socialismo. Tive a impressão que você estabeleceu um "discreto paralelo" entre a tática marxista e a situação que temos vivido no Brasil, ante a associação dos poderes executivo e judiciário. É isso mesmo? E a polêmica do PIX teria a ver com a fiscalização das movimentações financeiras"...
Aproveito o comentário para tratar um pouco mais - se bem que ainda brevemente - das fases da história conforme Marx.
Elas são discutidas por Marx no seu materialismo histórico, que é também uma visão histórica da economia. Este, junto com o materialismo dialético fazem parte da autoproclamada concepção científica do universo e da história humana. Ao analisar a sociedade Marx afirma que a história do homem - que é a historia da luta de classes - passou por várias fases. Todas foram evoluindo dialeticamente através das contradições internas de cada sistema da época. São elas:
1. O comunismo primitivo. Aconteceu nos primórdios da humanidade. Tudo era comum e não havia exploração do homem pelo homem. Desapareceu quando surgiu a divisão do trabalho e a propriedade. Contudo, como a história evolui dialeticamente, em espiral, no futuro teremos novamente o comunismo mas em um nível muito mais evoluído.
2. O escravismo. Nesta fase tivemos não só a propriedade das terras e das coisas mas, também, a propriedade de outros seres humanos. Tivemos os senhores escravistas e os escravos. Foi nela que que teria começado a exploração do homem pelo homem.
3. Feudalismo . Teria nascido das chamadas contradições antagônicas da economia feudal. Nesta fase os exploradores passaram a ser os senhores feudais, o rei, e a Igreja, que era também senhora feudal. A classe explorada, nesta sociedade proponderantemente agrícola, era a dos servos da gleba.
4. Capitalismo. É a fase da burguesia, que surge como classe no final da Baixa Idade Média. Na Idade Moderna, com a Revolução Industrial e as Revoluções liberais o burguês passa a dominar e explorar uma nova classe: o proletariado. Marx afirma que o Estado burguês e seus aparelhos fazem parte da supraestrutura que existe para manter tal exploração.
Marx viveu na época capitalista e a estudou. Desse estudo nasceu seu chamado "socialismo científico" que explica toda a história, determinada por fatores econômicos na qual impera a luta de classes. Tese afirmada claramente no Manifesto Comunista de 1848:
"...A história de todas as sociedades é a história da luta de classes.
O homem livre ou escravo, patrício ou plebeu, barão ou servo, numa palavra, opressores e oprimidos, estiveram sempre em luta uns contra os outros, sem quartel, por vezes dissimulada, por vêzes aberta, e que terminou sempre por uma transformação revolucionária da sociedade, ou pela destruição simultânea das classes em luta.
...Mas nossa época, a época da burguesia, tem de peculiar o fato de que simplificou a oposição de classe. Cada vez mais, a sociedade se divide em dois grandes inimogos, em duas grandes classes diamentralmente opostas: a burguesia e o proletariado". (K MARX, F. ENGELS - Manifesto Comunista)".
Dessa terrível luta é que deveria surgir outra fase da história. Marx, com palavras esclarecedoras e também duras, orgulha-se de ter demonstrado porque e como ela ocorreria::
"O que fiz de novo (com relação à luta de classes, já exposta pelos "historiadores e economistas burgueses" consiste na seguinte demostração: 1. a existência das classes liga-se a certas lutas definidas, históricas, ligadas também ao desenvolvimento da produção; 2) a luta de classes conduz necessariamente à ditadura do proletariado; 3) essa ditadura constitui somente o período de transição para a supressão de todas as classes e para uma sociedade sem classes". (K. MARX, carta a Weidemeyer 5.03.1852. in PIETTRE, p. 258)
4. Fase socialista. Vejam com atenção. A revolução socialista supera o sistema capitalista mas não cria um estado mais democrático, a não ser que democracia seja entendida como fim das desigualdades de classe. Nela é eliminado o direito à propriedade privada dos meios de produção, tanto nas cidades como no campo. O Estado aumentaria seu poder e estabeleceria a "ditadura do proletariado". usando seu poder implacável para combaterr os antigos capitalistas e impedir a volta da exploração do homem pelo homem. Na prática foi uma ditadura usada para combater qualquer um que parecesse adversário do regime e que não poupou nem mesmo milhares de antigos revolucionários. Voltaremos ao assunto quando tratarmos do socialismo real.
Nesta fase prevaleceria o princípio: "De cada qual segundo sua capacidade, a cada qual segundo seu trabalho". Ou seja, ainda haveria graus de desigualdade nos salários, mas não mais exploração, dado que a mais valia capitalista deixaria de existir. Na prática, após a Revolução Russa de 1917 e outras que se lhe seguiram tivemos a implantação do socialismo marxista em países da Europa e da Ásia. Mais recentemente ele passou a ser chamádo de socialismo realmente existente. Não me lembro quem criou o termo. De qualquer modo muita gente de esquerda o aprecia. Simplesmente porque todo o horror existente nos países socialistas não teria ocorrido por erros intrínsecos do socialismo e menos ainda do marxismo. A narrativa então criada alega que os verdadeiros princípios de Marx tinham sido deturpados... Acredite se quiser.
5. Fase comunista. Feita a revolução socialista chegaríamos, gradualmente, ao comunismo mais evoluído. O princípio vigente seria: "de cada qual segundo sua capacidade, a cada qual segundo sua necessidade". Note-se bem: só há direito ao necessário. Lenin afirma, sem nenhum pejo que o trabalho comunista deve ser gratuito:
... "Devemos e podemos formular abertamente a questão do trabalho comunista - de resto, seria mais justo dizer do trabalho socialista, pois não se trata ainda da fase superior, e sim da fase inferior, do primeiro estágio do desenvolvimento da nova ordem social que nasce do capitalismo.
O trabalho comunista, no sentido mais estreito da palavra, é o trabalho realizado gratuitamente, em proveito da sociedade, trabalho que não é realizado nem como prestação determinada nem para dar direito a certos produtos, nem segundo normas legais, antecipadamente estabelecidas. É um trabalho voluntário, realizado fora de todas as normas, sem ter em vista remuneração, recompensa, trabalho condicionado ao hábito de trabalhr para a coletividade e pelo sentimento (transformado em hábito) da necessidade de trabalhar para a comunidade - trabalho que corresponde a uma necessidade de organismo sadio.
É evidente (...) que estamos ainda longe de uma aplicação ampla e realmente maciça desse trabalho.
(...) o fato de que a questão seja levantada, (..) constitui um passo à frente (...).
Sábados comunistas, exércitos de trabalho, serviço de trabalho obrigatório, tais são, sob formas diversas, as realizações práticas do trabalho socialista e comunista". (LENIN "De la destruction d'un ordre séculaira à la construction d'un ordre nouveau". 11.04.1920. in PIETTRE, p. 310-311.
Então amigos, acharam convidativo o trabalho socialista-comunista?
Lembremos que nenhum país governado por comunistas conseguiu chegar a esta fase. Os chineses, por exemplo, tentaram um comunismo radical, pelo menos em certas regiões. Mais para a frente, para não deixar o artigo muito longo e pesado, daremos exemplos de países que tentaram implementar à força práticas comunistas. Só lembro aos amigos que todas essas tentativas fracassaram
6. Fase anarquista. Não é uma fase de caos, pelo contrário, seria uma fase de profunda ordem e harmonia social. Nela teríamos o desaparecimento do Estado. Os homens, totalmente evoluídos. "homens novos", como dizemos engenheiros sociais, não mais corrompidos por sistemas opressivos, seriam capazes de se organizar pacificamente e de modo eficaz, de modo que nada faltasse a ninguém. Nenhuma autoridade seria mais necessária. O mundo seria um imenso kibutz desfrutando de imensa igualdade. Sem propriedade, sem família, sem qualquer autoridade. Uma visão que nos faz lembrar dos sonhos do milenarismo religioso.
Uma palavrinha final sobre um ponto abordado por meu colega Theresiano: Tive a impressão que você estabeleceu um "discreto paralelo" entre a tática marxista e a situação que temos vivido no Brasil, ante a associação dos poderes executivo e judiciário. É isso mesmo?
Sem dúvida há um paralelo. Não sou daqueles que acreditam - como faz equivocadamente muita gente - que não há mais perigo de novas revoluções socialistas no mundo. Certos pseudo intelectuais que afirmam isso acabam favorecendo, conscientemente ou não, a propagação das ideias dos diferentes socialismos e comunismos revolucionários. O ideal de Marx, ainda que tenha sofrido revezes, continua aceso na alma de muita gente. Ele ainda é propagado clara e abertamente por partidos comunistas e diversas correntes revolucionárias inspiradas pelo menos em alguns dogmas do marxismo. No geral, contudo, a ação da Revolução é feita de modo mais camuflado. Se estudarmos a história do PT - que não se declara oficialmente comunista, veremos que, apesar de suas várias correntes internas há sempre um esforço comum para se procurar internalizar na sociedade tudo o que nos possa aproximar de sua utopia tão sonhada. Isso é feito não só através da propaganda clara do marxismo em suas várias facetas mas também pela manipulação da opinião pública, pelo aparelhamento do Estado e de muitos setores da chamada sociedade civil organizada. Há paralelismo com a situação do Brasil de hoje? Não tenho nenhuma dúvida. Espero mostrar tal verdade na medida em que for explicando mais pontos da doutrina marxista.
______________________________________
Notas: 1. A questão do PIX não tem diretamente uma relação com o socialismo. Todo governo procura cobrar impostos - eles são necessários para o bem comum - e procura evitar que determinados grupos deixem de cumprir suas obrigações tributárias. Até aí, tudo bem. Acontece que o PT e seus aliados revolucionários acreditam e defendem que o Estado é indutor de progresso e, nessa lógica, querem aprofundar a influência do Estado na economia. Aliás, mais do que influência, deveríamos dizer diretrizes. Depois querem passar de uma economia gradualmente intervencionista para uma economia planificada, como aquela que existiu no socialismo real. No caso concreto brasileiro a celeuma do PIX só teve sucesso porque todos já perceberam que o governo Lula não tem seriedade em enfrentar a péssima situação fiscal do país com seu crescente déficit público. Pelo contrário, só procura meios de arrecadar mais. Supostamente para ajudar os mais pobres...
Supostamente. Nada mais que supostamente.
Bibliografia
1, PIETTRE, André. Marxismo, terceira edição, Zahar Editores, RJ, 1969.
2.HRYNIEWCZ, Severo. Para Filosofar Hoja: Introdução e História da Filosofia. 5ª edição, Rio de Janeiro, Edição do autor, 2001. Distribuição. Livraria e Editora Santelena Ltda. RJ. Ver p. 437 e 438 onde são comentadas as várias fases com seus respectivos modos de produção.