sábado, 15 de outubro de 2011

A CONCEPÇÃO LUTERANA DO ESTADO





Valter de Oliveira


Ultimamente vários pensadores têm abordado a questão do papel ou das funções do Estado em uma sociedade pluralista. Dentro desta perspectiva tanto no âmbito político quanto no âmbito do judiciário destaca-se o debate sobre as relações do poder público com a religião. (1)

Podemos nos perguntar: para que tal discussão? Não é um debate de intelectuais, tão alheios, como se verifica com freqüência, às reais necessidades do povo?

Contrariamente ao que muitos podem imaginar o tema tem enorme importância. Para a democracia, para a sociedade, para o futuro do cristianismo e das religiões e inclusive para os que não têm fé.

Do que li e ouvi sobre o assunto nos últimos meses encontrei posicionamentos que trazem luzes e esperanças para o futuro. Por outro lado, encontrei afirmações que me deixaram preocupado. Por quê? Porque foram defendidas por católicos sérios e eruditos que, em minha modesta opinião, estão enganados.

Para discutir melhor o assunto decidi colocar no blog Olivereduc, a partir de hoje, textos que explicam os diferentes pensamentos sobre o papel do Estado na História Moderna e Contemporânea. Começo com a concepção de Lutero sobre a Igreja e o Estado. Estou certo que muitos amigos leitores ficarão surpresos com o pensamento do reformador.

Quem conhece a história da Reforma sabe que Lutero tinha uma visão profundamente pessimista do homem. A razão é simples: ele considerava que o pecado original afetara profundamente o homem corrompendo totalmente nossa natureza. Em sua obra, “O Servo Arbítrio”, negou nossa liberdade. Toda a ação humana, por nascer de uma natureza totalmente corrompida, seria sempre pecaminosa.

“Com a sua visão pessimista do homem, afirma o historiador Guido Zagheni, Lutero só podia mesmo conceber o Estado como o único e supremo guardião de uma vida ordenada e pacífica, e por isso o único capaz de permitir ao cristão dedicar-se ao culto a Deus e à vida espiritual”.

Como isso pode acontecer?


A resposta é simples: “Para que isso aconteça é necessário que a ordem espiritual e interior esteja totalmente separada da ordem política e exterior”. É o que fica plenamente claro nas palavras de Lutero:

“Entre o cristão e o homem de governo deve haver uma profunda separação. Certamente, o príncipe deve ser cristão, mas não é como cristão que ele é considerado, mas como príncipe. Esse homem é cristão, mas a sua função nada tem a ver com a religião. Embora encontrando-se no mesmo homem, os dois estados ou funções estão perfeitamente separados e até opostos (Ed. Weimar, II, 439). Não é a Cristo que deves perguntar, mas ao direito imperial ou local. Aí acharás a conduta a ser adotada” (Weimar, II, 391).



Zagheni comenta: “Dada essa incomunicabilidade entre ordem espiritual e ordem política, nada se pode e nada se deve fazer contra o triunfo do mal na política. Lutero está bem consciente de que os príncipes podem ser perversos: “Desde o princípio do mundo, um príncipe inteligente é um pássaro raro, e um príncipe bom é algo mais raro ainda. Geralmente os governantes são os maiores loucos e os maiores canalhas que a terra já hospedou”. (Ed. Weimar, II, 439)

E por que dar o poder a eles? (Lutero havia declarado que cada Príncipe era o chefe da Igreja em seu território).


“(...) pelo fato de que, com eles, cria-se e manifesta-se a ordem, isto é, aquele bem supremo que permite aos verdadeiros cidadãos dedicar-se à vida interior; portanto, a ordem permite a existência do único bem que pode existir no mundo das obras”. E ainda: “Os príncipes e a autoridade secular são os artífices da paz, permitem que se ensine a palavra de Deus e se batize, coisas que só a paz torna possíveis”.

O pessimismo de Lutero a respeito do homem “amplia-se para uma assustadora maldade coletiva: “É preciso que haja no mundo um governo duro e sério para forçar e subjugar os maus. O mundo não pode ser governado sem efusão de sangue, a espada do príncipe deve ser vermelha de sangue, porque o mundo quer e deve ser mau.”” (Zagheni 104).

O que fazer diante do governante mau e injusto?

“Por essa insubordinação do homem ao bem unida à impossibilidade de uma efetiva regra de justiça, só resta reconhecer a autoridade dos governantes independentemente de como estes se comportam: “Se sua Majestade Imperial é injusto e não cumpre os seus juramentos, seu poder não é afetado por isso. Um imperador ou príncipe pode violar todos os mandamentos divinos e nem por isso se torna menos imperador ou menos príncipe”. (Na Kurfust Johan, Ed. de Erlangen, LIV. 139). “Deus prefere suportar a autoridade injusta do que o povo rebelado por uma causa justa” (...). “O poder secular é uma pequena coisa diante de Deus. Justa ou injusta, não merece que lhe demos a pena da desobediência e da oposição” (destaque nosso).

Lutero e o poder do Estado: realizamos “o que os papas jamais fizeram nem quiseram fazer”.

O reformador “está orgulhosamente ciente de ter dado ao Estado “consciência de si”, de tê-lo glorificado e liberado dos vínculos que o condicionavam. “O nosso ensinamento deu à soberania secular a plenitude do seu direito e da sua força, realizando assim aquilo que os papas jamais fizeram nem quiseram fazer” (Bericht na einem guten Freund, Ed. Weimar, VI, 589). E mais: “Essa glória, essa luz que a envolve, a autoridade deve a mim; a mim é que devem gratidão” (Verantwortung, Ed. Weimar, VIII, 107).


A contribuição de Lutero para o absolutismo do poder temporal

Zagheni conclui afirmando: “Essa exaltação da autoridade do Estado – seja no seu aspecto positivo de mantenedora da ordem e da paz e, por isso, da vida espiritual, seja no seu aspecto político de qualquer julgamento terreno – é o que Lutero transmite ao absolutismo como um aspecto fundamental do espírito público característico dessa época”.


As idéias de Lutero sobre o problema das relações entre o Estado e a religião chocavam-se com o que a Igreja “ensinara durante os séculos anteriores, segundo a qual existem duas sociedades, a civil e a eclesiástica, ambas dirigidas por hierarquias que repartem entre si o governo do gênero humano.

Da concepção luterana resulta também uma clara separação entre o príncipe e o povo por ele governado, porque o primeiro é a manifestação de Deus no mundo exterior e visível, enquanto o segundo é um aglomerado de todos os males da humanidade decaída, manifestação exterior do pecado que corrompeu e arruinou a natureza humana. (...)

Para governar esse povo mau, a ser dominado através de “correntes e jaulas”, institui-se o príncipe luterano, que substitui Deus no mundo (mesmo quando é péssimo), enquanto poder organizador com o objetivo de, a qualquer custo, pacificar o mundo exterior: “A mão que dirige a espada secular não é uma mão humana, é a mão de Deus. Não é o homem, é Deus quem manda enforcar, torturar, decapitar, é Deus quem faz as guerras. Em todas essas coisas reconheçamos suas obras e os seus vereditos”. (destaque nosso)

Jacobinos da Revolução Francesa, marxistas e nazistas, em suma todos os laicistas adoradores do Estado, agradecem. Milhões de vítimas choraram amargamente. Outras tantas continuam a chorar.


Notas:

1. O Papa também tem tratado amplamente do assunto. Foi tema de seu discurso diante do Parlamento alemão no mês de setembro.

2. Zagheni, Guido. A Idade Moderna, Curso de História da Igreja, São Paulo, Paulus, 1999. As palavras de Lutero estão em itálico. As citações vão das p. 103 a 109).




segunda-feira, 29 de agosto de 2011

O CORINTHIANO E O ESTADO LAICO




Valter de Oliveira



Benê nasceu na periferia de S. Paulo, em Itaquera, não muito longe do futuro estádio do Timão. Nasceu pobre como tantos de nosso povo lutador. Também não teve escola boa, nem plano de saúde. Os pais foram um tanto rudes, é verdade, mas bons. Ensinaram-lhe que no mundo há o bem e o mal, o belo e o feio, a alegria e a dor, a fidelidade e a traição. Que tudo isso faz da vida uma bela luta. Que valia a pena vivê-la, a todo momento, plenamente, até o fim. Essas idéias marcaram profundamente a alma de Benê. Cresceu e vive como lutador, e, como conseqüência lógica, viu a beleza de ser corinthiano. Benê é feliz, muito feliz. E aqui começa nossa história, nas últimas rodadas do Brasileirão.


Era um domingo, 14h. Benê saiu de casa com a jovem esposa, com destino ao Pacaembu. Ambos bem uniformizados. Ele com a camisa branca, ela com a nova camisa vinho do Timão. O que ambos não imaginavam é que iriam se defrontar com os “vigilantes” do Estado laico, formados após oito meses de curso de “direitos humanos na perspectiva humana”. Benê e a esposa não sabiam que 800 homens e mulheres tinham sido treinados e que, a partir daquele dia, iriam patrulhar os bairros da capital.

O casal foi abordado pouco depois de sair de casa, antes ainda de chegar ao metrô. Curiosamente, em uma rua quase deserta.

- “Pare aí!” Gritou um dos 4 “vigilantes” ao lado de uma perua do tipo usada pela Rota.


Assustados, pararam. Que desejariam aqueles homens tão parecidos nos rostos quanto nas vestimentas? Por que pareciam sem alma?

Outro grito fez nosso corinthiano voltar a si:

- “Não lê jornal não? Não tem TV? Vai tirando a camisa!”

Benê, que não estava entendendo nada, tentou argumentar:

-“Que que é isso, seu moço. A gente só qué vê o jogo do Timão!”

-“Conversa fiada! Tá fingindo que não sabe de nada? Não viu a nova medida provisória? Não sabe que usar símbolo religioso atenta contra o Estado Laico?”

“Num acompanho política não seu guarda. Sou só um fiel do Timão!

“Pois é: vocês não dizem que Corinthians é religião? O Estado é laico, entendeu? E...

“Que diabos é laico?”, pensou Benê...

O vigilante continuou:

“E símbolo religioso não pode. Só na sua casa. Na rua não! É espaço público. E vai tirando a camisa!”

O tempo ia passando. Aflita, Chiquinha sussurrou ao marido:

“Vambora bem, a gente vai perdê o jogo. É aquele ditado que os rico fala: leva os aner, fica com os dedo. Deixa a camisa com os home. O importante é os jogadô vê que nóis tá lá com eles”...

“Tudo bem, tudo bem. Mas a camisa dela não... tentou dizer Benê. Na moral, seu guarda, e... também não é muito certo ela ficá sem camisa na rua, né?”

A resposta foi inesperada:

“Ficar sem camisa não é problema nenhum. Para nós não tem essa de certo e errado, de moral e imoral. Estado laico também não segue moral nenhuma. Nem sabe dizer o que é certo ou errado e...”

“Cruz credo!”, exclamou Chiquinha.

“e... chega de prosa. Dá aqui seu símbolo religioso.”

Chiquinha entregou a camisa. Benê também. Tirou uma toalha da mochila, colocou no ombro da mulher e ousou perguntar:

“Não é perseguição contra nóis não? Não é preconceito?”

O vigilante 2, cópia do 1, respondeu com voz metálica:

“Preconceito é contra minoria, entendeu? Vocês são maioria! Maioria tem que ficar quieta!”

Vendo que não tinha papo Benê perguntou:

“A gente pode ir?”

“Pode. Mas antes tem que ser fichado. E vai receber um folheto em casa com as novas regras para a torcida corinthiana no campo de futebol. E as primeiras começam hoje”.

-‘Hoje?! Que tem que fazer hoje?”

-“Tem que ficar no Tobogã”.

-“Mas eu comprei ingresso pra arquibancada!”

-“Problema seu. Se quiser ver o jogo vai pro Tobogã”. Vai e aguarda em casa o folheto com as regras.

Desconsolado Benê foi embora. Deu ainda para ouvir um grito:

“E não pode mais cantar o hino!”.

Foi muito triste, mas... o Timão ganhou. Benê, Chiquinha e mais 5.000 corinthianos voltaram felizes para casa. (os demais, barrados por outros vigilantes, ficaram de fora)...

Na semana seguinte chegou o livrinho com novas regras:

1. Era proibido torcer em voz alta. Incomodava os moradores do bairro que não gostam de futebol.

2. Também não se podia dançar. Poderia causar complexos em quem tivesse dificuldades motoras.

3. Regra para certos clubes: Nenhum time pode ter nome de santo! Nenhum nome religioso!

Pois é, numa penada acabaram com São Paulo, São Caetano, Santos...
E estava tudo bem claro: quem quer participar tem que colaborar. Tem que seguir as regras.

“E quem fez essas malditas regras, o governu?” Perguntava Chiquinha?

“Sei lá, dizia Benê. Qué dizê, é coisa dos político do tal de Estadu Laico. Ele diz que nóis tem fé demais”.

-“Cruz Credo!” exclamou Chiquinha persignando-se. E continuou: Magine só a gente jogando contra o Paulo, o Caetano, o André, o Bernardo, o... Ih! Como fica o Santos? Baleia Futebol Clube?

-“Sei não. O que sei é que a gente não vai desisti. E tá na hora du jogo. Vamo lá!”.

É minha gente, fé é fé. O amor falou mais alto. Foram lá mais uma vez. O Timão venceu! De novo saíram felizes.

Terceira semana.

Nova regra. Torcida corinthiana tinha que ficar em silêncio absoluto. Não podia fazer sinal da cruz nem mover as mãos secando o time adversário na hora de cobrar falta. E era para ficar o tempo todo de costas para o jogo.

-“E agora, Chiquinha?” perguntou Benê. “Que adianta ir lá?”

-“Adianta amô, adianta. Os jogadô vão vê que nóis tá lá. Vão ouvir a gente e os anjo cantando. E nóis ganha. Vamo sê campião. Acredita?”

“Acredito, meu bem, acredito”.

Foram. Não cantaram. Não viram. Ganharam!

Moral da história: Os fiéis sempre vencem.



segunda-feira, 7 de março de 2011

O USO DE ARMAS PELA POLÍCIA




07/03/2011

Passou praticamente despercebida do público a assinatura, no último dia do governo Lula, da Portaria Interministerial n.º 4.226/10, que limita a utilização de armas letais pelas forças policiais do País. Segundo as novas diretrizes, o agente de segurança pública só poderá disparar sua arma em caso de "legítima defesa própria ou de terceiro contra perigo iminente de morte ou lesão grave".

As diretrizes fixadas pela portaria devem ser obedecidas pelos agentes da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal, do Departamento Penitenciário Federal e da Força Nacional de Segurança Pública. Não têm, portanto, caráter compulsório para os órgãos estaduais de segurança pública.

Entre outras inovações, a Portaria n.º 4.226/10 determina que, a partir de abril, os agentes policiais devam portar, no mínimo, dois instrumentos de baixo potencial ofensivo, além de arma de fogo. Pelas novas regras, o uso da força deverá obedecer às convenções e tratados internacionais de proteção aos direitos humanos e "aos princípios da legalidade, da necessidade, da proporcionalidade, da moderação e da conveniência". Os tiros de advertência, portanto, não são "prática aceitável".

A Portaria n.º 4.226/10 recomenda ainda que os agentes policiais não apontem armas de fogo contra pessoas, durante os procedimentos de abordagem, e proíbe que atirem contra veículos que desrespeitarem bloqueios policiais em vias públicas - a não ser quando o ato representar risco imediato de morte ou lesão grave aos agentes ou a cidadãos.

As novas regras foram preparadas pelo Ministério da Justiça e pela Secretaria de Direitos Humanos, da Presidência da República, e seu alcance está provocando polêmica nas áreas de segurança pública. A portaria destina-se aos órgãos federais de segurança.

No entanto, seu artigo 4.º determina que os Estados que quiserem receber recursos federais para a área de segurança pública terão de enquadrar suas Polícias Civil e Militar nas novas regras. Os governos estaduais que não seguirem as determinações da portaria não receberão verbas federais para treinamento e para aquisição de viaturas, armas e equipamentos policiais. Vários secretários de Segurança Pública e dirigentes das polícias estaduais alegam que há muito tempo adotam técnicas de "uso progressivo da força", que são previstas por leis - e não por simples portarias.

É o caso do comandante da Polícia Militar de São Paulo, coronel Álvaro Batista Camilo, para quem a portaria é uma cópia do que já acontece no Estado. Segundo ele, desde 1999 os 100 mil homens da corporação fazem, em média, 30 mil abordagens com armas de fogo por dia, seguindo os procedimentos consagrados pela Portaria de 31 de dezembro. Já o secretário de Defesa Social de Minas Gerais, Lafayette Andrada, afirma que a polícia mineira, desde 2002, treina seus homens em técnicas de uso de armas não letais, capacitando-os para o policiamento comunitário.

As críticas mais contundentes à Portaria n.º 4.226/10 partem de entidades de delegados e de investigadores de polícia. Seus dirigentes afirmam que, por fazer exigências impossíveis de serem atendidas e conter dispositivos irrealistas, como a proibição do uso de armas de fogo em bloqueios policiais, ela teria sido escrita por quem não tem experiência na linha de frente do combate à criminalidade. "Por que assaltantes em fuga respeitariam um bloqueio, se não existe a possibilidade de interceptação do carro para identificação?" Faltou debate com aqueles que conhecem a atuação policial, afirma Reinaldo de Almeida Cesar, secretário de Segurança Pública do Paraná e ex-diretor da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal. A entidade está propondo ao ministro da Justiça, Martins Cardozo, a revisão de algumas das novas regras.

Algumas dessas críticas são procedentes, mas a portaria tem o mérito de padronizar condutas e procedimentos. Isso ajuda a coibir abusos, evitando que os agentes exorbitem de suas prerrogativas, aumenta a eficácia das operações e dá mais segurança à sociedade.

Fonte: O Estado de São Paulo