quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

A LIBERDADE NA DEMOCRACIA

 

Decidi postar em meu blog e não no FB texto escrito por Marcelo Guterman. Merece estar em um local em que possa ser mais facilmente visto  quando desejarmos. 


"Ontem escrevi sobre os jogos de poder envolvidos na prisão do deputado Daniel Silveira. Hoje, depois de pensar e organizar um pouco o tema na minha cabeça, vou escrever sobre o assunto em si: a questão da liberdade de expressão.
Começarei por um tema absolutamente estranho ao assunto que trataremos: o aborto. É interessante como, neste tema, os papéis se invertem: os conservadores, sempre tão ciosos em relação ao tema “liberdades individuais”, defendem um regramento do Estado para cercear a liberdade da mulher. E os progressistas, sempre prontos a estabelecer regras de comportamento, defendem com unhas e dentes a opção livre da mulher.
Vamos analisar a coisa do ponto de vista do conservadorismo, que é o que nos interessa neste momento. Por que, afinal, no caso do aborto, se quer proibir a mulher de fazer uma opção livre? Simples: porque, neste caso, há um terceiro envolvido, o feto. O debate sobre o aborto passa pela desagradável discussão sobre a natureza humana do feto. Os progressistas normalmente não querem saber sobre essa discussão. A liberdade da mulher vem antes.
Ernesto Araújo chegou a afirmar que preferiria ser pária entre as nações por defender a liberdade. No entanto, no caso do aborto, tenho certeza que o nosso chanceler defende uma “limitação” na liberdade da mulher. Porque, afinal, a minha liberdade termina onde começa a do outro. E, neste caso, há um outro envolvido.
Não existe liberdade absoluta. Não existe liberdade de expressão absoluta. Assim como no caso do aborto, é preciso analisar se o exercício daquela liberdade constitui um crime. Temos liberdade para fazer o bem, não para fazer o mal. Portanto, não há como escapar da análise da fala do deputado, por mais que essa análise seja espinhosa.
Os deputados, vez por outra, a depender do seu nível de educação, chamam uns aos outros de canalhas, bandidos, corruptos. Coisas que podem gerar, inclusive, processos por injúria. Por que, então, neste caso específico, o deputado foi preso, enquanto, nos outros casos, há todo um processo antes? Não vou entrar aqui na tecnicalidade do flagrante, se o delito é contínuo ou não, enfim, se há elementos para a prisão em flagrante. Não é minha praia. Vou me concentrar na fala em si.
Para essa análise, é interessante observar os trechos destacados por Alexandre de Moraes em sua ordem de prisão (...). Não foram destacadas injúrias como o tamanho do bilau do Fachin ou as preferências sexuais do Barroso. Há dois tipos de falas destacadas: 1) ameaças, veladas ou não, à integridade física dos magistrados e 2) ameaças, veladas ou não, à integridade do STF e do próprio Congresso.
A coisa foi, portanto, além da injúria pessoal. As falas do deputado, se transformadas em realidade, significariam o fim das atuais instituições democráticas e sua substituição por uma “ditadura do bem”. Alguém já disse que o melhor regime de governo é uma ditadura que concorde comigo. O segundo melhor, ou o menos pior, é essa democracia que temos, com todos os seus evidentes defeitos. E o terceiro pior é uma ditadura com a qual não concordamos.
Daniel Silveira, na prática, usa sua liberdade de expressão para defender um regime político que, uma vez instalado, a primeira coisa que faz é acabar com a liberdade de expressão. Trata-se de uma contradição em termos. O regime democrático, em qualquer país, restringirá esse tipo de discurso sem medo de ser feliz. Injúria e difamação não atentam contra o regime. Discursos pelo fechamento do STF e do Congresso, sim. Por isso, entenderam os magistrados que o deputado, no mínimo, merecia uma prisão preventiva (figura prevista em nosso código penal, diga-se de passagem) mesmo antes do julgamento.
Termino com uma pequena digressão. Há quem diga que palavras, por pior que sejam, não têm o poder de criar realidades. Talk is cheap, dizem os americanos. Não é verdade. Os grandes líderes, aqueles que moveram seus povos em uma determinada direção, o fizeram através de suas palavras. Não é à toa que são famosos os discursos de Lincoln, Churchill e Hitler. Uma revolução começa no mundo das ideias, e se torna realidade através das palavras.
“Se pomos um freio na boca do cavalo para que nos obedeça, conseguimos controlar o seu corpo todo. Reparai também nos navios: por maiores que sejam, e impelidos por ventos impetuosos, são, entretanto, conduzidos por um pequeníssimo leme, na direção que o timoneiro deseja. Assim também a língua, embora seja um membro pequeno, se gloria de grandes coisas. Comparai o tamanho da chama com o da floresta que ela incendeia! Ora, também a língua é um fogo! É o universo da malícia! Está entre os nossos membros contaminando o corpo todo e pondo em chamas a roda da vida, sendo ela mesma inflamada pelo inferno!” (Tiago 3, 2-6)"

Extraído do FB do autor em 18 de fevereiro de 2021