sexta-feira, 21 de maio de 2021

O DIREITO DE PROPRIEDADE E A RERUM NOVARUM

 

Valter de Oliveira

                  

A doutrina da encíclica Rerum Novarum, de Leão XIII sobre a propriedade constitui, diz (o historiador da Igreja) Ildefonso Camacho, o centro da polêmica com o socialismo. Ele não é defendido, porém, como um direito absoluto. Aqui o Papa rejeita a concepção romana de propriedade (1) bem como a concepção liberal. Leão XIII afirma o direito de propriedade e formula vários inconvenientes que adviriam de sua eliminação como preconizada pelos socialistas. São os seguintes:

                       Primeiro inconveniente: prejudica os próprios operários.

                      Segundo inconveniente: é uma injustiça porque a propriedade privada é de direito natural.

                      Terceiro inconveniente: é contrária à função do Estado.

                      Quarto inconveniente: perturba a paz social.

                        Sem dúvida  alguma o argumento mais forte em defesa da propriedade é que ela é um direito que decorre da natureza humana.  Baseando-se no caráter previdente do homem, como ser dotado de razão (RN 5) , e no trabalho como capacidade de tornar a terra produtiva e de transformar os bens materiais (RN 7)                


Ildefonso Camacho

A doutrina pontifícia sobre a propriedade é um dos pilares da nova ordem social proposta pela Rerum Novarum. Ela é complexa, diz Camacho. E por quê? Porque se de um lado se afasta do liberalismo de outro, sustenta ele, sofre a influência dessa ideologia. (cf. Camacho, op. cit. p. 63 e 64). A argumentação em favor da propriedade como direito natural (RN 6 a 8) teria um “tom fortemente individualista”.

                        “... O ponto de partida é o indivíduo (...) os direitos da pessoa ficam determinados antes de sua incorporação à vida social. Não é arriscado identificar aqui a marca do pensamento liberal, com toda a sua carga de individualismo.” E continua:

                        “Ao acentuar-se o aspecto individual, fica em segundo plano outro elemento bastante arraigado na mais antiga tradição da Igreja, elemento que se sobrepunha à propriedade privada como um princípio de importância superior: o destino universal dos bens.  Não que este ponto tenha desaparecido na Rerum Novarum. Dele resta um vestígio, em forma de objeção, quando se diz que a propriedade privada não contradiz o princípio segundo o qual Deus deu a terra à totalidade do gênero humano, para dela usufruir e desfrutar (RN 6).” (2)

                        No que, então, a encíclica inova? No que se afasta do liberalismo?

                        Afasta-se quando o Papa insiste nos deveres da condição de proprietários e quando se concentra nas obrigações do Estado.

                        Se a propriedade é natural ao homem nem por isso, já o dissemos, é um direito absoluto. Ao usá-las, diz o Papa, “o homem não deve considerar as coisas como próprias, e sim como comuns” (RN l6). E os bens que recebemos “para aperfeiçoamento próprio” devem ser usados “em benefício dos outros”. (RN 14). Este ponto, depois da Rerum Novarum, é cada vez mais claro na doutrina social da Igreja.

                        E qual o papel do Estado em relação à propriedade? É duplo.

                        Em primeiro lugar deve “garantir a posse privada com o império e a ajuda das leis” (RN 28). É o dever do Estado de proteger os direitos individuais. E com a Rerum Novarum fica claro que ele deve defender principalmente os mais fracos.

                        Em segundo lugar o Estado deve contribuir para a difusão da propriedade. É natural. Se todos têm direito a  propriedade é preciso que seu acesso seja facilitado a todas as classes, a todos os grupos sociais. Para isso é necessário que o operário tenha um salário suficiente, salário que lhe permita uma poupança, e que lhe permita adquirir um pequeno patrimônio ( RN 33).

                        A Rerum Novarum não fala – já o mencionamos – em propriedade privada dos meios de produção. Não há dúvida, porém, que implicitamente a admite. É o que pode ser comprovado, por exemplo, com a seguinte passagem: “Intervenha, portanto, a autoridade do Estado, e, reprimindo os agitadores, preserve os bons operários do perigo da sedução e os legítimos patrões de serem despojados do que é seu” (RN 23).-3.


Observação: o texto é um excerto de minha dissertação "Evolução da Doutrina Social da Igreja. Histórico do pensamento dos Papas e dos Bispos do Brasil de Leão XIII a Pio XII em relação à Questão Social, ao Capitalismo e ao Socialismo" apresentado no Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP em 2001. Orientador: Dr. Augustin Wernet. 

1. No Direito Romano se diz que a propriedade é um direito de uso e abuso sobre o bem possuído. Já na concepção católica somos administradores dos bens de Deus. Não há direito ao abuso. Se tenho um bem e não o quero mais o correto não é destruí-lo, é vende-lo ou dá-lo a quem possa fazer bom uso dele. 

2 - CAMACHO. Ildefonso. Doutrina Social da Igreja. Uma Abordagem Histórica. São Paulo, Loyola, 1995, p. 63.

3. O que é claramente explicitado nas encíclicas sociais posteriores.