Valter de Oliveira
Certo dia ele decidiu explicar o ensinamento dos Padres da Igreja sobre
as riquezas e o direito de propriedade. Novidade para mim. No final ele
concluiu que, conforme Santo Ambrósio, enquanto houver uma pessoa passando fome
na terra, não há direito de propriedade... (1)
Fiquei perplexo. Comentei com um amigo. Concordamos que, se fosse
realmente assim, ninguém hoje teria direito à propriedade, dado que há uma
infinidade de gente passando fome. Não fazia nenhum sentido (2).
A perplexidade tinha uma explicação. Eu havia começado a ler encíclicas
sociais no final de 1964 e já tinha lido a Rerum Novarum. Sabia que Leão XIII condenara os males da
Revolução industrial que provocaram a questão social operária, os erros
iluministas e liberais e clamava para que fosse feita justiça aos
trabalhadores. Contudo, ao mesmo tempo, ele havia afirmado que era falsa a suposta
solução proposta pelo socialismo. Este, afirmou o Papa, só deixaria os trabalhadores
ainda mais miseráveis.
De qualquer modo não esqueci da afirmação do padre João sobre os Padres da
Igreja.
Algum tempo depois vim a ter um contato indireto com textos patrísticos ao
começar a ler livros sobre a doutrina social da Igreja. Não era muito diferente
do que ouvira naquela noite em Itaquera. Com efeito, muitas das afirmações que
fazem podem causar estranheza e exprimem ideias que precisam ser entendidas e contextualizadas.
Seguem alguns exemplos.
Textos de
Padres da Igreja
Comecemos citando S. Basílio, que Pierre Bigo considera o mais “economista” dos padres gregos.
“O
que despoja um homem das suas vestes terá nome de ladrão. E o que não veste a
nudez do mendigo, quando pode fazê-lo, merecerá um outro nome? Ao faminto
pertence o pão que tu guardas. Ao homem nu, o manto que fica nos baús. Ao
descalço, o sapato que apodrece na tua casa. Ao miserável, o dinheiro que tu
guardas enfurnado (3).
Agora um texto de S. Ambrósio:
“Não deveis dizer: “Eu gasto o que é meu, eu gozo daquilo que é meu”. Não: não daquilo que é vosso, mas daquilo que é de outro. Esses bens não vos pertencem: pertencem em comum a vós e a vossos semelhantes, como são comuns o céu e a terra e tudo o mais. (4).
Em princípio, não há como não
reconhecer que os textos assustam. Basta imaginar o que diriam deles se
tivessem sido pronunciados pelo Papa...
De qualquer modo julgo
importante vermos, mais do que a letra, o espírito que os Padres procuravam
incutir em seus fiéis.
Outro texto interessante é de
S.Basílio que faz uma comparação baseada em Cícero, a do egoísta no teatro:
“Tu
és semelhante ao homem que, reservando uma vaga no teatro, queria impedir os
outros de entrar e desejaria gozar só de um espetáculo, ao qual todos têm
direito. Assim são os ricos: dos bens comuns que abarcaram, eles se decretam
donos por terem sido seus primeiros ocupantes”. (5)
Mas, voltemos à questão. Como
conciliar tais posicionamentos com o direito particular de propriedade? Os
autores que pesquisamos concordam que tais leituras precisam ser feitas
corretamente.
Pierre Bigo aborda outro ponto
que vai dar um matiz à questão:
“Mas
existe também o direito de posse. Sobre esse ponto os Padres são também
unânimes. Os ricos podem salvar-se. Ao redor do ano 200, Clemente de Alexandria o afirmou numa célebre homilia (6) (na qual explica como o rico pode ser salvo)
e a lição será muitas
vezes retomada. Mas ele busca a salvação do rico na linha que será de todos os
Padres: o desapego do coração e a renúncia real aos bens que ultrapassem as
necessidades pessoais”
Camacho também aprofunda a
questão quando discute a questão dos bens materiais
“Os Padres (...) não
consideram os bens materiais maus em si. (...) Tomemos como paradigma a
sugestiva argumentação de S. Basílio. Para ele, os bens são naturalmente bons,
primeiro porque foram criados por Deus e, segundo, porque “o mandamento de Deus não nos ensina que devemos rechaçar os bens e
fugir deles como se fossem males, mas que os administremos”. Portanto “aquele que se condena, não se condena
absolutamente porque possuía bens, mas porque avaliou erradamente o que tinha e
não o usou bem” (7).
Camacho vai sintetizar a
questão relacionando a visão dos Padres com o problema de nossa natureza
decaída:
“A
doutrina dos Padres da Igreja, com relação à propriedade, pode ser resumida nos
seguintes termos: a intenção primeira de Deus era a destinação de tudo a todos.
O que era de direito natural era a apropriação social. A apropriação pessoal,
na mente dos mesmos Padres, era uma derrogação da lei primitiva, derrogação
exigida pelo pecado.
Deus
destina os bens da terra à fruição de todos os seus filhos. Mas essa fruição
pacífica tornava-se impossível pelo pecado, que desperta no homem os instintos
egoístas. A apropriação coletiva dos bens pelo homem inocente transformava-se
numa causa de tensões intoleráveis entre os homens marcados pelo pecado,
ameaçando a própria sobrevivência da espécie que emergia para a grande aventura
humana (8)
Os Padres escreveram quando
ainda vigia o Império Romano baseado, entre outras coisas, na escravidão. Naturalmente
não tinham uma série de conhecimentos de economia que temos hoje. Contudo, não
temos dúvida em afirmar, que suas preocupações sociais, mais a evangelização dos
bárbaros, e o papel desempenhado pela Igreja na derrocada do Império Romano, contribuíram
para que fosse sendo mudado e humanizado o direito e o uso da propriedade. Se na
Antiguidade havia uma enorme população de escravos, depois, na Idade Média,
eles gradualmente tornaram-se servos da gleba e tinham determinados direitos
reconhecidos. E depois do ano 1000 aumentou consideravelmente o número de
homens livres e proprietários.
De qualquer modo os manuais de
doutrina social da Igreja afirmam que será S. Tomás quem conseguirá harmonizar
os pontos aparentemente divergentes do ensinamento dos Padres.
Notas:
1.
Chamamos de
«Padres da Igreja» (Patrística) aqueles grandes homens da Igreja,
aproximadamente do século II ao século VII, que foram no Oriente e no Ocidente
como que «Pais» da Igreja, no sentido de que foram eles que firmaram os
conceitos da nossa fé, enfrentaram muitas heresias e, de certa forma foram
responsáveis pelo que chamamos hoje de Tradição da Igreja; sem dúvida,
são a sua fonte mais rica. (https://cleofas.com.br/os-santos-padres-da-igreja )
2. Em nossos dias, quando se fala em direito de propriedade
rejeitado pelo socialismo e pelo comunismo não estamos nos referindo a bens de
uso, bens pessoais, que não são negados por praticamente ninguém, mas a que
ficou conhecida como propriedade privada dos bens de produção. Por exemplo uma
indústria, uma rede de comércio, o agronegócio, a padaria da esquina. Tivemos
países socialistas que não aboliram pequenas e médias propriedades. Razão
tática, não de princípios.
3. Homilia6.
Contra a riqueza. 7. “Ricos e pobres”,pág. 76.pág 31, 277. In Pierre Bigo: a
doutrina social da Igreja, São Paulo, Loyola, 1969, p. 41, 42,
4.
Homilia 10, PG 61, 86
in Pierre Bigo..op.cit.,p. 42.
5.
Hom. 6.6. in Pierre
Bigo, op. cit, p. 42.
6.
( Homilia “Que rico pode ser salvo” ver Bigo op.cit.,p.
44,45) – a frase entre parênteses e em negrito é do site para dar maior
clareza.
7. ). (13, S.
Basílio, regras breves, in Práxis Cristã, Opção pela justiça e liberdade, São
Paulo, Paulinas, 1988, p. 55).
8.
Pierre Bigo e
Fernando Bastos. Fé Cristá e Compromisso Social, 2ª edição, São Paulo,
Paulinas,1993, p. 172.
Nenhum comentário:
Postar um comentário