Valter de Oliveira
Ultimamente vários pensadores têm abordado a questão do papel ou das funções do Estado em uma sociedade pluralista. Dentro desta perspectiva tanto no âmbito político quanto no âmbito do judiciário destaca-se o debate sobre as relações do poder público com a religião. (1)
Podemos nos perguntar: para que tal discussão? Não é um debate de intelectuais, tão alheios, como se verifica com freqüência, às reais necessidades do povo?
Contrariamente ao que muitos podem imaginar o tema tem enorme importância. Para a democracia, para a sociedade, para o futuro do cristianismo e das religiões e inclusive para os que não têm fé.
Do que li e ouvi sobre o assunto nos últimos meses encontrei posicionamentos que trazem luzes e esperanças para o futuro. Por outro lado, encontrei afirmações que me deixaram preocupado. Por quê? Porque foram defendidas por católicos sérios e eruditos que, em minha modesta opinião, estão enganados.
Para discutir melhor o assunto decidi colocar no blog Olivereduc, a partir de hoje, textos que explicam os diferentes pensamentos sobre o papel do Estado na História Moderna e Contemporânea. Começo com a concepção de Lutero sobre a Igreja e o Estado. Estou certo que muitos amigos leitores ficarão surpresos com o pensamento do reformador.
Quem conhece a história da Reforma sabe que Lutero tinha uma visão profundamente pessimista do homem. A razão é simples: ele considerava que o pecado original afetara profundamente o homem corrompendo totalmente nossa natureza. Em sua obra, “O Servo Arbítrio”, negou nossa liberdade. Toda a ação humana, por nascer de uma natureza totalmente corrompida, seria sempre pecaminosa.
“Com a sua visão pessimista do homem, afirma o historiador Guido Zagheni, Lutero só podia mesmo conceber o Estado como o único e supremo guardião de uma vida ordenada e pacífica, e por isso o único capaz de permitir ao cristão dedicar-se ao culto a Deus e à vida espiritual”.
Como isso pode acontecer?
A resposta é simples: “Para que isso aconteça é necessário que a ordem espiritual e interior esteja totalmente separada da ordem política e exterior”. É o que fica plenamente claro nas palavras de Lutero:
“Entre o cristão e o homem de governo deve haver uma profunda separação. Certamente, o príncipe deve ser cristão, mas não é como cristão que ele é considerado, mas como príncipe. Esse homem é cristão, mas a sua função nada tem a ver com a religião. Embora encontrando-se no mesmo homem, os dois estados ou funções estão perfeitamente separados e até opostos (Ed. Weimar, II, 439). Não é a Cristo que deves perguntar, mas ao direito imperial ou local. Aí acharás a conduta a ser adotada” (Weimar, II, 391).
Zagheni comenta: “Dada essa incomunicabilidade entre ordem espiritual e ordem política, nada se pode e nada se deve fazer contra o triunfo do mal na política. Lutero está bem consciente de que os príncipes podem ser perversos: “Desde o princípio do mundo, um príncipe inteligente é um pássaro raro, e um príncipe bom é algo mais raro ainda. Geralmente os governantes são os maiores loucos e os maiores canalhas que a terra já hospedou”. (Ed. Weimar, II, 439)
E por que dar o poder a eles? (Lutero havia declarado que cada Príncipe era o chefe da Igreja em seu território).
“(...) pelo fato de que, com eles, cria-se e manifesta-se a ordem, isto é, aquele bem supremo que permite aos verdadeiros cidadãos dedicar-se à vida interior; portanto, a ordem permite a existência do único bem que pode existir no mundo das obras”. E ainda: “Os príncipes e a autoridade secular são os artífices da paz, permitem que se ensine a palavra de Deus e se batize, coisas que só a paz torna possíveis”.
O pessimismo de Lutero a respeito do homem “amplia-se para uma assustadora maldade coletiva: “É preciso que haja no mundo um governo duro e sério para forçar e subjugar os maus. O mundo não pode ser governado sem efusão de sangue, a espada do príncipe deve ser vermelha de sangue, porque o mundo quer e deve ser mau.”” (Zagheni 104).
O que fazer diante do governante mau e injusto?
“Por essa insubordinação do homem ao bem unida à impossibilidade de uma efetiva regra de justiça, só resta reconhecer a autoridade dos governantes independentemente de como estes se comportam: “Se sua Majestade Imperial é injusto e não cumpre os seus juramentos, seu poder não é afetado por isso. Um imperador ou príncipe pode violar todos os mandamentos divinos e nem por isso se torna menos imperador ou menos príncipe”. (Na Kurfust Johan, Ed. de Erlangen, LIV. 139). “Deus prefere suportar a autoridade injusta do que o povo rebelado por uma causa justa” (...). “O poder secular é uma pequena coisa diante de Deus. Justa ou injusta, não merece que lhe demos a pena da desobediência e da oposição” (destaque nosso).
Lutero e o poder do Estado: realizamos “o que os papas jamais fizeram nem quiseram fazer”.
O reformador “está orgulhosamente ciente de ter dado ao Estado “consciência de si”, de tê-lo glorificado e liberado dos vínculos que o condicionavam. “O nosso ensinamento deu à soberania secular a plenitude do seu direito e da sua força, realizando assim aquilo que os papas jamais fizeram nem quiseram fazer” (Bericht na einem guten Freund, Ed. Weimar, VI, 589). E mais: “Essa glória, essa luz que a envolve, a autoridade deve a mim; a mim é que devem gratidão” (Verantwortung, Ed. Weimar, VIII, 107).
A contribuição de Lutero para o absolutismo do poder temporal
Zagheni conclui afirmando: “Essa exaltação da autoridade do Estado – seja no seu aspecto positivo de mantenedora da ordem e da paz e, por isso, da vida espiritual, seja no seu aspecto político de qualquer julgamento terreno – é o que Lutero transmite ao absolutismo como um aspecto fundamental do espírito público característico dessa época”.
As idéias de Lutero sobre o problema das relações entre o Estado e a religião chocavam-se com o que a Igreja “ensinara durante os séculos anteriores, segundo a qual existem duas sociedades, a civil e a eclesiástica, ambas dirigidas por hierarquias que repartem entre si o governo do gênero humano.
Da concepção luterana resulta também uma clara separação entre o príncipe e o povo por ele governado, porque o primeiro é a manifestação de Deus no mundo exterior e visível, enquanto o segundo é um aglomerado de todos os males da humanidade decaída, manifestação exterior do pecado que corrompeu e arruinou a natureza humana. (...)
Para governar esse povo mau, a ser dominado através de “correntes e jaulas”, institui-se o príncipe luterano, que substitui Deus no mundo (mesmo quando é péssimo), enquanto poder organizador com o objetivo de, a qualquer custo, pacificar o mundo exterior: “A mão que dirige a espada secular não é uma mão humana, é a mão de Deus. Não é o homem, é Deus quem manda enforcar, torturar, decapitar, é Deus quem faz as guerras. Em todas essas coisas reconheçamos suas obras e os seus vereditos”. (destaque nosso)
Jacobinos da Revolução Francesa, marxistas e nazistas, em suma todos os laicistas adoradores do Estado, agradecem. Milhões de vítimas choraram amargamente. Outras tantas continuam a chorar.
Notas:
1. O Papa também tem tratado amplamente do assunto. Foi tema de seu discurso diante do Parlamento alemão no mês de setembro.
2. Zagheni, Guido. A Idade Moderna, Curso de História da Igreja, São Paulo, Paulus, 1999. As palavras de Lutero estão em itálico. As citações vão das p. 103 a 109).
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