Valter de Oliveira
Muitas vezes lemos as
expressões: a propriedade é sagrada; a propriedade é um direito absoluto; a
propriedade é inviolável.
Tudo isso pode ser aceito
desde que entendamos como as palavras estão sendo usadas.
No caso da encíclica Fratelli Tutti, recentemente promulgada pelo Papa Francisco, houve quem não entendesse o texto - O Santo Padre disse que a propriedade não era um direito absoluto e nem inviolável- e tenha chegado a dizer que ele, neste ponto, tomara uma posição socializante, socialista ou até comunista.
Como dissemos em artigo
anterior a confusão vem da falta de conhecimento da Doutrina Social da Igreja e
da teologia. Na verdade, acontece também, porque muitos não têm certas noções básicas de
direito, de ciência política, de história. Muitas vezes não têm culpa disso. Estão mergulhados em um mundo confuso, relativista, manipulador onde não é tão fácil conhecer a verdade.
Para entendermos melhor toda a questão é preciso vermos qual é a gênese do direito de propriedade. É o ponto que passamos a
abordar.
Começo a explicar o assunto
tendo como fonte um livro de Doutrina Social da Igreja intitulado “A Igreja e a
Questão Social”. Eu o escolhi porque foi publicado no Brasil em 1956. Na Europa
foi em 52. Só para que não se diga que determinados ensinamentos são frutos do
Concílio Vaticano II ou dos Papas “modernos”. Comecemos pela relação que o autor, o dominicano Van Gestel, faz entre “Direito Divino e humano de propriedade”:
“Somente
Deus é, em todo sentido da palavra, senhor e proprietário de tudo que é criado.
A Ele só pertence a terra e toda sua plenitude. Este direito humano e
fundamental de propriedade lhe é devido porque tudo criou e tudo mantém na
existência pela ação contínua de sua providência. São seus títulos de
propriedade”.
E continua:
“Desta
verdade básica segue-se, tanto para a razão como para a fé, que a posse humana
é apenas um direito de uso da propriedade de Deus, uma gerência do domínio
divino. Assim, no uso e na administração dos bens cuja gestão Deus lhe confiou,
o homem deve se conformar com as prescrições divinas” (1)
Sabemos que para ajudar o
homem a cumprir o plano divino aqui na terra, de modo a fazer seu trabalho,
realizar-se, atingir seu fim último, Deus nos concedeu a lei divina e a lei
natural.
Mesmo os que não tiveram a
graça de receber a revelação do Antigo e do Novo Testamento tem um caminho, uma
luz que vai ajuda-lo: a lei natural. É através dela que os planos divinos são transmitidos
ao homem. É também graças a seus efeitos que o homem se relaciona com os outros
e toda a natureza e percebe o modo como pode legitimamente submete-la dentro de
uma correta escala de valores.
Estas breves considerações são
o fundamento filosófico do direito de propriedade.
Descendo
ao concreto
Destinação Universal dos Bens (2)
Comecemos com algumas questões simples: o ar, a luz, a terra, o conjunto da natureza? De ninguém, ou melhor, de todos. E o alimento? De quem são os vegetais e os frutos, os peixes e os animais? De quem é a terra? De ninguém especificamente. A expressão latina para expressar tal verdade é: "res nullius". Coisa de ninguém. Contudo, o que é de ninguém é de todos...
Aqui, a Igreja coloca um dos princípios de sua doutrina social, o princípio do "Destino Universal dos Bens". Todos "são ordenados às necessidades do gênero humano!"
Tais ideias – ou tese – diz Van
Gestel, está de acordo com as tradições constantes da doutrina da Igreja. São Tomás a proclama com insistência na Suma Teológica e os Papas, desde Leão XIII
têm insistido nela.
Agora surge a questão: se é
assim, como o homem se apropria das coisas?
É evidente que não é a
natureza quem vai assinalar “quem é proprietário deste ou daquele bem”. Tivemos
e temos casos de apropriação por grupos ou comunidades. Povos caçadores
partilham sua caça. Outros tiveram glebas em comum. Nada disso é contra o
direito natural. O bem comum está sendo alcançado conforme sua circunstância histórica.
A questão que se coloca é
quanto à apropriação individual dos bens. Tema que desenvolveremos no próximo
artigo. De momento achamos mais conveniente explicarmos como o homem se
apropria dos bens da natureza.
Propriedade
e trabalho
Quando o ser humano dedicou-se
à agricultura percebeu que seria preciso parar em um determinado local e trabalhar nele. Pelo menos por um certo tempo. Aí, aquilo que ali era produzido, passava a ser de um grupo, de uma comunidade, com exclusão de outros que ali não trabalharam. Aqui destacamos um ponto fundamental ensinado pelos filósofos do direito natural: “o homem, ser racional,
consciente e responsável pelo seu futuro, tem o direito de apropriar-se não só
de bens de consumo como também de bens de produção, em vista da satisfação de
suas necessidades futuras” (3).
E o roubo?
Um índio, com um arpão ou
rede, coleta alguns peixes. Coloca-os em um cesto e se afasta para coletar mais
alguns. Índios de uma outra tribo se aproveitam do descuido e levam os peixes e o cesto. Roubaram?
Sem dúvida. Mas não pegaram o que era de todos? Não, pegaram um bem que foi fruto
do trabalho de outrem. Na verdade roubaram seu trabalho. O primeiro índio
trabalhou e ficou sem nada. Para si, para sua família, para sua tribo.
Hoje, na sociedade moderna, trabalhamos e recebemos um salário. O que é este? É nosso trabalho “condensado”, “materializado em” forma de dinheiro. Quando um ladrão o assalta e leva embora seu salário do mês levou embora todo seu trabalho, todo seu fruto. Aí o criminoso é pior que um escravocrata. Este, explora um ser humano, retira todo o fruto de seu trabalho. Contudo, bem ou mal, ainda lhe concede alimento e moradia.
Nessa ótica é bom lembrarmos o que ensina a moral católica quando diz que não pagar ou defraudar o salário de quem trabalha é um "pecado que brada aos céus".
Negar o direito de propriedade é negar o próprio homem e sua liberdade.
Notas:
1. Gestel, Van O.P. A Igreja e a Questão Social. trad. Pe. Fernando Bastos de Ávila, S.J. Rio de Janeiro, Agir, 1956, p. 174.
2. Os princípios da Doutrina Social da Igreja, DSI, são os seguintes: O Princípio do Bem Comum; A Destinação Universal dos Bens; o Princípio de Subsidiariedade; o Princípio de Participação; O Princípio de Solidariedade.
3. Gestel, op. cit. p. 179
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